Os adivinhos sempre dizem a mesma coisa

Correspondência

05.03.12

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Chico,

Pouco depois da sua nossa última troca de cartas, subi o rio Mekong do sul do Vietnã até o Camboja. Quando finalmente desci em Phnom Penh, percebi pela primeira vez que, quando você fica horas viajando em barcos de diferentes tamanhos e finalmente atraca num porto, há uma espécie de enjôo retardado. Seu pés estão firmes no chão, mas a calçada vacila, os prédios parecem fora de prumo. A tontura chega em terra firme.

Editei esse vídeo com umas imagens que fiz da viagem pelo delta do Mekong, e talvez ele te ajude a entender o que estou dizendo:

[vimeo]http://vimeo.com/37885979[/vimeo]
http://vimeo.com/37885979

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Ah, e esse aqui, com imagens de Hanói, a maior cidade grande rural do mundo, onde senhoras com chapéus de palha limpam e cortam vegetais nas calçadas de grandes avenidas, e de um templo em Hué, no final:

[vimeo]http://vimeo.com/36894505[/vimeo]
http://vimeo.com/36894505

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Essa carta demorou não apenas por falta de tempo para escrevê-la, mas por falta de capacidade minha em dizer, agora, alguma coisa sobre o que estou vivendo. Numa viagem longa dessas, e cheia de paradas contrastantes, há  uma hora em que você simplesmente perde a capacidade de absorver o mundo – e que dirá construir algo sobre ele.
Se eu já estava cansado em Macau, agora é como se eu tivesse comido cinco quilos de nhoque com chilli num rodízio de massas. O livrão da vida está entalado no meu pescoço.

Como estou captando imagens para um filme-documentário (O “Nada tenho de meu”),
carrego quase o tempo todo uma câmera na mão. É uma maneira nova de se relacionar com o mundo. Com a câmera, a minha percepção dos lugares ganha uma moldura diferente, uma intenção diferente, uma aproximação diferente. Talvez pela minha absoluta ausência de domínio técnico – não tenho treino ou conhecimento formal algum – carregar essa câmera no último mês me pareceu bastante mais confortável e prazeroso que pensar em construir pensamentos e imagens em sequências de palavras, frases e parágrafos.

Pensando naquela história que você contou da sua infância, sobre você e seu amigo buscando fotos manipuladas em revistas e enciclopédias, eu hoje diria que uma imagem não precisa ser manipulada – ela é a própria manipulação da realidade. Porque, como nós sabemos, a decisão mais importante não é o que enquadrar, mas o que tirar do quadro. Esse recorte é um exercício de manipulação poderoso. Talvez o maior de todos.

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Depois que temporariamente abandonei nossa correspondência, fui de avião de Hanói para Hué, de carro para Hoi An, de avião para Saigon, e de lá, barquinhos parando por cidadezinhas do delta do Mekong como Can Tho, Cai Rang e Chau Doc até pegar uma lancha para o Camboja. Da capital Phnom Penh fiz a viagem de ônibus mais absurda da minha vida (palafitas, trânsito suicida, karaokê no ônibus) até Siem Reap, onde, seguindo o conselho do adivinho chinês em Macau, passei quatro dias sendo mordido por mosquitos nos santuários Khmer ao redor de Angkor Wat, o maior templo já construído pelo homem – ou melhor dizendo, por 300 mil homens no século XII. E de lá, de carro até a fronteira com a Tailândia e, depois, Bangkok, que, altura daquelas, foi como chegar em Tóquio. Agora estou na praia mais deserta da ilha de Phuket, onde até o mar é picante, e lá fora os relâmpagos iluminam o fim da noite.

Eu não sei bem o que te dizer, ou como te dizer. Nas últimas semanas dormi em pensões com vista para o banheiro do vizinho, hotéis cinco estrelas com vista para arranha-céus iluminados e numa palafita sobre o rio Mekong, ouvindo o sapatear dos ratos sob a cama – esse foi o meu sábado de carnaval, aliás. Comi de cócoras em banquinhos nas calçadas de Hanói, em pensões em Bangkok, em mercados no interior do Camboja.
Vi gente trabalhando em fábricas de macarrão a 10 dólares por um dia de 14 horas de trabalho, conversei com um sino-americano num bar em Phnom Penh que me jurou que estava no país há meses porque as putas bonitas custavam 20, e comi o melhor prato de comida da minha vida numa calçada de Hoi An, uma cidadezinha medieval no meio do Vietnã, por 2. Fui em um inferninho em Saigon chamado Apocalipse Now, numa boate em Phnom Penh chamada Heart of Darkness, vi pistas de dança com 8 seguranças armados ao redor e bebi drinque de cobra – com sangue de cobra. Rezei não sei muito bem para quem ou o quê na frente de incontáveis Budas, Chico, e acho que depois de tentar catedrais, mesquitas, sinagogas e pirâmides ao redor do planeta, não há paz que se compare a que se instala imediatamente quando você entra num pagode budista em estilo chinês. Ouvi a música sacra católica mais bonita de todos os tempos, em vietnamita, na catedral francesa em Hanói, onde até na praça, sobre as motos, os fiéis cantavam. Ouvi um monge recitar por horas num templo budista na Chinatown de Saigon e vi outro culto budista cantado por centenas ao redor de Wat Arum, em Bangkok, num por do sol em tons de violeta por trás da pirâmide de 70 metros de mosaicos em porcelana na beira do rio Chao Phraya. Na Chinatown de Bangkok, um advinho leu minha mão, meu rosto, as cartas e meu futuro, em Angkor Wat um monge leu meu passado e me abençoou.

Os adivinhos sempre dizem a mesma coisa, mas isso aí eu te conto em Chicago.

Abraço grande,

JP

Ps.: Aqui está o segundo episódio do filme que estamos fazendo, se passa ainda em Macau:

[vimeo]http://vimeo.com/37722354[/vimeo]
http://vimeo.com/37722354

PS2: E esse aqui é o primeiro episódio:

[vimeo]http://vimeo.com/37596255[/vimeo]
http://vimeo.com/37596255

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