Memórias flutuantes
Arthur Dapieve
17.10.11
Jogar bola na praia me ensinou muito do que sei sobre lealdade, anos antes de eu saber que o Camus tinha escrito mais ou menos a mesma coisa sobre o tempo em que jogou de goleiro em Argel. Só que eu jogava de zagueiro. Fazia dupla feroz com um sujeito cujo apelido era Corvo no time "do Othon" (minha turma não era nem a da Miguel nem a da Xavier da Silveira, mas a que ficava entre as duas ruas, na faixa de areia em frente ao hotel, em instrutiva convivência com as piranhas e os gringos). Mais de um atacante parrudo se surpreendeu derrubado depois de levar uma bordoada firme de um sujeito com meu físico de existencialista.
O mito da Zona Sul
Aldir Blanc
13.10.11
Vamos para Copacabana. O inesquecível para mim não era o mar, mas a fragrância, misto de perfume e ânsia, que sentia ao sair do Túnel Novo. Menino precoce, sempre associei aquele cheiro a mulheres bonitas de perna grossa. Lembro que a família estava reunida em um almoço domingueiro, na rua dos Artistas, em Vila Isabel, quando meu tio mais novo disse, em tom de quem não admitiria palpites contrários: - Semana que vem, vamos mudar para o Leme, em Copacabana. Minha avó materna (...) ficou pálida e benzeu-se, como se tivesse ouvido que titio iria, com a esposa e minha priminha Valéria, para Sodoma.
Exílio em Laranjeiras
Arthur Dapieve
10.10.11
O copacabanense também representa o grosso nato, mas posa de homem do mundo, com cafajestadas em vários idiomas. Hoje, como autoexilado em Laranjeiras, já não me relaciono bem com minha terra quase natal (nasci no Hospital da Lagoa, de pais que então moravam em Ipanema e logo se mudaram para o Posto 5 da minha infância, adolescência e primeira maturidade). Não porque eu tenha deixado de ser grosso. Ao contrário, piorei. Como a "Princesinha do Mar", que está mais para "Rainha Mãe do Brejo", velhota que insiste em se vestir de prostituta infantil. Falta-lhe senso de ridículo.
A Tijuca Profunda
Aldir Blanc
06.10.11
O tijucano - e sou um deles - me horroriza e fascina. É um falso machão. Entra em casa, com umas cervejas na cabeça, e grita, dá decisão, mas se a patroa encarar, a maioria bota o galho dentro. Reina, coçando acintosamente o que a Liesa chama de genitália, na frente do buteco, carta marra na purrinha, mexe com as gostosonas (sem falsa modéstia, são muitas) que passeiam. Umas ficam indiferentes; poucas bancam as vaconautas, olham pra trás e sorriem. Agora, se uma delas parar, de mãos nas cadeiras, e chamar "Vem cá, meu gato, que a mamãe resolve esse atraso todo!", o cara corre feito o Usain Bolt.
Fragmentos do luto
Arthur Dapieve
03.10.11
Leia a primeira carta da correspondência entre o jornalista e escritor Arthur Dapieve e o compositor Aldir Blanc. Pelos próximos dois meses, ambos trocarão cartas semanais no blog do ims. Sempre disse que o Barthes é um dos meus heróis intelectuais. E ao ler este Diário de luto me toquei de que ele também é um dos meus heróis emocionais, desde que, ainda na faculdade, li Fragmentos de um discurso amoroso em honra da proverbial vagabunda que não me dava mole. (...) Ele de certa forma me ensinou a gramática daquele sofrimento safado.
Observações de um outsider
José Geraldo Couto
15.09.11
Muitas das pessoas de outras áreas com que me relaciono - escritores, cineastas, músicos, scholars, outros jornalistas - se espantam quando digo que escrevo também sobre futebol, como se este fosse incompatível com as artes e com o intelecto de um modo geral. Chegam a me olhar com certa condescendência, como quem perdoa um pequeno vício de uma pessoa a quem se preza. (...) A gente não precisa se desculpar um com o outro para dizer que Zidane é um artista, que Garrincha é um poeta, ou que Pelé escreveu com os pés um épico digno de Tolstoi.
Meio de campo
Sérgio Sant'Anna
12.09.11
E o Gerson? O que dizer de seus passes longos, como aquele passe para Pelé matar a bola no peito, deixar cair e fulminar o goleiro da Tchecoslováquia no segundo gol do Brasil na Copa de 70? Poderia falar de tantos outros, até nos que só vi jogar quando criança, como Zizinho e Jair da Rosa Pinto. Enfim, os artistas da bola, hoje tão difíceis de se ver e vou incluir também um estrangeiro que me encantava, Zinedine Zidane. E confesso que sempre me orgulhei de ser amigo de um deles, meio-campista, Afonsinho, irretocável na sua categoria, nos seus passes e também no carregar a bola, e ainda como pessoa humana.
A Borges o que é de Borges
José Geraldo Couto
08.09.11
A prática continuada de determinado ofício, o exercício de determinado meio de expressão, dá ao artista um olhar privilegiado, uma sensibilidade aguçada para os trabalhos de seus pares. (...) E essas visões de artistas por outros artistas são muitas vezes idiossincráticas, passionais, desequilibradas. Nem sempre podem ser tomadas como parâmetro crítico. Um exemplo (...): Bioy Casares, o grande parceiro e amigo de Borges, não gostava da literatura do Macedonio Fernández. Assim como Bergman não gostava do cinema de Orson Welles, Buñuel não gostava de Rossellini, e Godard não gosta de Kubrick.
Apreciando a literatura argentina
Sérgio Sant'Anna
05.09.11
O Aleph nos leva a Borges, que não poderia estar ausente do livro de Ricardo Piglia. Na narrativa "O último conto de Borges", ele nos diz que o último conto do mestre surgiu de um sonho em que viu um homem sem rosto num quarto de hotel e que lhe oferecia nada menos que a memória de Shakespeare. Afirma ainda Piglia que Borges teve de resolver o dilema: como escrever num espanhol que tenha a precisão do inglês, mas conservando os tons da fala nacional. Tudo isso a propósito da estranheza dos dois grandes estilos produzidos, segundo Piglia, no romance argentino do século 20: o de Macedonio Fernández e o de Roberto Arlt.
É proibido proibir, mas não opinar
José Geraldo Couto
01.09.11
Que fique claro: não estou criticando esta nova situação, nem lamentando nostalgicamente o fim da arte do passado. Para mim, a maior babaquice é suspirar pela "Arte", ou pelo "Belo", escritos assim, com maiúsculas, e vistos como entidades abstratas, a-históricas. Penso que cada obra de arte - ou cada objeto estético, cada artefato expressivo, cada manifestação material do espírito, como quiserem chamar - cria suas próprias regras, sua própria lógica, seus próprios critérios e valores. Se conseguir tocar a sensibilidade e a inteligência de outros, muito bem. Se não conseguir, paciência.
