Com e sem óculos escuros

IMS na Flip

02.06.16

“Ninguém morre no fim”, avisa Eucanaã Ferraz, organizador da esperada fotobiografia de Ana Cristina Cesar (1952-1983), cereja do Instituto Moreira Salles no bolo da Festa Literária Internacional de Paraty, que em 2016 (de 29 de junho a 3 de julho) homenageia a autora mais celebrada da chamada Poesia Marginal, representante da geração 1970 no acervo de Literatura do IMS desde 1999.

A edição de Inconfissões – fotobiografia de Ana Cristina Cesar optou por uma inversão cronológica em sua narrativa: começa com as últimas fotos da biografada, voltando no tempo até o primeiro registro fotográfico de sua vida. A morte seria óbvia demais para terminar um livro sobre a escritora.

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No texto abaixo, íntegra do capítulo de abertura da publicação, Eucanaã Ferraz comenta as escolhas que fez no processo de criação da fotobiografia de Ana Cristina Cesar, que neste 2 de junho faria 64 anos.
Inconfissões… tem lançamento marcado para às 20h do dia 30 de junho, na Casa do IMS em Paraty (Rua do Comércio, 13).

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Em sentido horário, Ana Cristina Cesar em quatro momentos: em 5 de fevereiro de 1954, aos 2 anos, foto de Waldo Cesar./ Um de seus últimos registros, por volta de fevereiro de 1983, foto de Ricardo Chaves./ Em 1982, foto de Katia Muricy./ Por volta de 1970, foto de Cecília Leal. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

Este álbum de “inconfissões”

Por Eucanaã Ferraz

Sabemos que toda fotografia é exterioridade, aparência que se projeta em nós sem palavras, silenciosa. Ainda assim, penso que na foto do escritor procuramos sua escrita.

Não há dúvida de que conhecemos um autor mais pelo seu nome assina­do em textos e livros do que pela sua imagem, o que talvez se deva ao fato de a presença empírica de poetas e prosadores, de modo geral, sempre ter sido pouco frequente, limitada a noites de autógrafos, debates, conferências, entrevistas e outros cenários de visibilidade moderada (embora haja as exceções da exposição assídua e de grande alcance). Deixando de lado experimentações que, por motivos diversos, furtam-se à regra comum — como a escrita coletiva de um texto para o teatro —, escrever é um trabalho individual, que acontece longe do olhar público e que, uma vez concluído, prescinde inteiramente da presença física ou da imagem do autor. Este só se mostra fora da escrita, ou ainda, em terrenos exteriores a ela, que a ela pouco ou nada acrescentam. Trata-se então da vida literária, algo entre o cultivo do prestígio e as obrigações da carreira. O escritor, diante da câmera, não raro finge que escreve, sentado à mesa de trabalho. Sabemos desse pequeno gesto teatral e o aceitamos, cons­cientes de que jamais veremos a escrita em sua hora e seu lugar.

Mas o que procuramos na fotografia não é o gesto de escrever. Vendo as fotos de um escritor, perguntamo-nos se algo nelas se cola — no sentido de ajuste, mas sobretudo de revelação — a seu texto, levando-o a um grau mais alto, aditando-lhe uma camada a mais de significado. Deparamos, então, com aquela exterioridade silenciosa. O que o rosto de Baudelaire acrescenta a seus poemas? Um retrato do poeta de As flores do mal fala-nos menos dele do que de seu fotógrafo (Nadar, por exemplo). No entanto, insistimos, des­confiados de que a fotografia, ao preencher o vazio da imagem do escritor, será capaz de nos dar outra chave para lhe adentrar a escrita.

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Charles Peixoto, Ana Cristina Cesar, Cacaso e Armando Freitas Filho no Jockey Club Brasileiro, Rio de Janeiro, 1982. Foto de Rogério Carneiro. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

Arriscamos, então, uma espécie de empresa metafórica, como se pudéssemos mover a imagem para um âmbito que não o da visibilidade abso­luta, e no qual descobriríamos uma semelhança subentendida entre foto e texto. Acreditamos que seria possível, por exemplo, ir ao encontro de uma coincidência entre o silêncio da imagem e a voz do eu que fala nos poemas. A partir de diversos níveis de ilusão, consciência, empenho e capacidade de figuração, damos curso a um exercício livre de analogia.

Mas a fotografia nos mantém na exterioridade, recusando-se à interpretação. Mal contemplamos aquele rosto no papel e logo somos reenviados aos textos do escritor, levando conosco apenas o silêncio do que vimos. E se retornamos aos textos, o que procuramos na fotografia também não se encontra lá, naquela esfera em que mesmo a individualidade mais rente ao corpo, à psique, à biografia, é sempre invenção.

Numa dimensão menos ambiciosa, vamos às fotografias em busca do evento: Ana em viagem, Ana e seus amigos, Ana criança, Ana e sua família, Ana em casa etc. — como se pudéssemos recobrar dali uma existência, esquecidos de que a fotografia apenas “repete mecanicamente o que nunca mais se repe­tirá existencialmente” (Roland Barthes em La chambre claire). Vemos apenas a parte rígida e morta do relato. Como disse a própria Ana, “a fotografia/ é um tempo morto/ fictício retorno à simetria”.

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Ana Cristina Cesar em viagem ao Nordeste para auxiliar o grupo de pesquisa socioeconômica e religiosa do Centro de Estudos, Pesquisa e Planejamento (Cenpla), organização não governamental fundada por seu pai, Waldo Cesar, Pernambuco, 1972. Fotógrafo não identificado. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

A fotobiografia — como a morfologia da palavra sugere — guarda uma dimensão narrativa. Mas se é a constituição de um perfil, este é sempre parcial, já que sua composição implica escolhas e, com elas, vazios: faz-se do que se aproveitou, mas também do que ficou de fora; da parcimônia aqui, do exces­so adiante; do que ganhou destaque e do que pareceu irrelevante; e há, para o fotobiógrafo, a fantasmagórica suposição de que deve haver algumas — ou muitas! — fotos excepcionais das quais desconhece a existência e que um dia virão à tona para lhe mostrar a precariedade do retrato que compôs. Mesmo o projeto gráfico tem uma natureza narrativa própria. Portanto, esta é, de Ana Cristina Cesar, uma obra incompleta e, sem hesitação, algo ficcional.

Toda fotobiografia dá-se assim, aos saltos: faltam imagens de eventos que seriam importantes, enquanto momentos sem relevância aparente fo­ram registrados. No arranjo, conta-se com o que já foi feito, com um acervo constituído por muitos acasos: haver ou não uma máquina fotográfica ao alcance dos olhos e dedos; o desejo de fotografar; o fastio de fazê-lo; a presença ou não de luz; o flash ou a ausência dele. Uma série de contingências, enfim, que determinam antecipadamente o que adiante servirá, ou não, para as narrativas futuras.

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Rio de Janeiro, c. 1970. Fotos de Cecília Leal. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

Biografar talvez seja pactuar com certa mitologia: este personagem é digno de; qualquer fato de sua vida merece ser registrado, visto, lembrado. Na história de um escritor, fotos banais de um lançamento podem alcançar um inesperado valor. A obviedade parece surpreendente: houve o lançamento daquele livro; e daquele outro; aconteceu naquela livraria; lá estavam amigos, parentes, outros escritores, admiradores, curiosos; foram dados autógrafos; havia pelo menos um fotógrafo. Constatamos com estranha surpresa que aconteceu o que nos disseram ou imaginávamos que acontecera.

Há, simultaneamente, congelamento e descongelamento: no primeiro caso, imobilizamos a personagem na cena que, até então, apenas conjeturá­vamos. A suposição deixa sua fluidez interrogativa, fantasiosa — aconteceu mesmo? como terá sido? como Ana estava vestida? sorriu para o fotógrafo (para nós)? estava à vontade? —, e então tudo se imobiliza como documento em seu aspecto definitivo: ela estava de tal modo; sim, ela posou para a câmera; sim, ela assinou livros etc.

Tudo parece, portanto, respondido.

No segundo caso, descongela-se o vazio (onde foi? como foi?), e aquilo que não vimos ou desejamos rever ganha a fluidez da narrativa: os cabelos cresceram e foram outra vez cortados; era uma vez o lançamento de um livro; houve duas estadias em Londres; que linda menina ela foi. E assim por diante.

Rio de Janeiro, 1982. Fotos de Katia Muricy. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

Rio de Janeiro, 1982. Fotos de Katia Muricy. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

Uma coisa e outra, no entanto, são acontecimentos parciais. Só podemos contar (levar em conta, mas também narrar) com o que foi fotografado, e isso significa que nem todas as perguntas serão respondidas. Na verdade, outras interrogações surgem: por que ela estava ali? por que parece triste? quem é aquele homem no canto? por que riam? O fotobiógrafo depende de muitos narradores que vieram antes dele.

Escolher entre esta ou aquela foto. Por vezes simplesmente não se consegue optar, e então são aproveitadas esta e aquela e mais aquela outra, todas. A triagem, noutros casos, pode ser ligeira, como se não pesasse a gra­vidade de se narrar a vida alheia. Assim, a fotobiografia é um documentário errático e parcial.

Havendo um acervo expressivo, pesa no julgamento aquilo que é da natureza da fotografia, e não do valor simbólico ou do mérito documental.

Questões de foco, por exemplo, ou de enquadramento, ou de luz. Nem sempre, porém, a escolha se faz por motivos de ordem técnica. Houve momentos em que simplesmente escolhi a foto na qual Ana me pareceu mais bonita. Mas devo observar que não busquei a excelência fotográfica. É preciso, afinal, reconhecer que determinada imagem — na qual faltam as virtudes de uma boa fotografia — pode servir como relato valioso, como rastro, semelhante à impressão de um fóssil deixada no terreno. De Ana Cristina, há, por exem­plo, fotos meramente turísticas, lembranças produzidas sem os cuidados de um fotógrafo/biógrafo hábil e muito menos profissional. Fotos-rascunhos, pode-se dizer. Pois está aqui também essa Ana comum, Ana para si mesma, protagonizando não mais que recordações de viagem.

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Bariloche e Buenos Aires, Argentina, fevereiro de 1977. Fotógrafo não identificado. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

Não a conheci pessoalmente. Ana Cristina Cesar é apenas uma fotografia na parede. Não sei se soube ao mesmo tempo da poesia e do rosto da poeta. Não sei se sua poesia, apenas ela, pareceu-me, de saída, exibir, literalmente, um rosto — que eu não poderia fotografar, que eu sequer vira fotografado, mas que se me afigurava como o anverso de uma medalha —; a outra face era o texto — que eu podia tocar, guardar. E, talvez por isso, quando vi enfim o rosto fotografado não percebi que este aderira àquele que eu adivinhara, de um modo que já não se poderiam descolar.

Não ter conhecido Ana Cristina Cesar faz com que, para mim, ela seja também — além de uma autora — o que me contam sobre ela. Você conheceu a Ana? Já ouvi essa pergunta ser feita a alguém; já fiz essa pergunta; já me per­guntaram o mesmo. Mas por que a vida de Ana Cristina Cesar nos interessa tanto? Talvez por ela ter deixado muitos rastros biográficos. Desejamos saber mais, carecemos de novas peças para o retrato que nos parece extenso, mas, simultaneamente, emaranhado, imperfeito.

O gosto de Ana pela fotografia se parece com seu apreço pelo diário e pela correspondência. Arrisco-me a dizer que Ana tinha o mesmo gosto da biografia em suas fotos. E me pergunto se é isso mesmo o que vejo nas imagens da criança no colo dos pais ou dos avós, como se, tão pequenina, já pudesse intuir que no momento do clique passava a ser o objeto narrável de alguém do outro lado da máquina. A Ana jovem não deixa dúvidas de que se sabia em cena quando a máquina apontava. Parecia gostar disso, observando regras, obedecendo às ordens do fotógrafo (é fácil imaginar), propondo ângulos dife­rentes, elaborando a pose, exigindo de si mesma uma entrega ativa. Há quem disfarce esse gosto, mas ela não. O tédio também é indisfarçável. Mais que isso, também faz parte das estratégias do biografado recusar-se à biografia, o que me parece claro quando Ana vale-se dos óculos escuros. É, sem dúvida, uma recusa, mas parcial, já que alguém — uma personagem — permanece em cena e parece nos dizer que não tem nada a nos dizer, antecipando com seu silêncio enigmático o silêncio da fotografia revelada.

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À esquerda: com Flavio Lenz, Rio de Janeiro, 1976. Acervo pessoal Cecília Leal. À direita: Paris, abril de 1980. Acervo pessoal João Almino

Avizinham-se fotos, poemas, desenhos, cartas, manuscritos, casos, mas não se formou com isso um rosto definitivo. A fotobiografia é sempre a moldagem de elementos desiguais e mesmo estanques, o que não constitui, portan­to, uma cinematografia. Entre uma imagem e outra — entre duas fotos, entre o poema e a foto, entre a foto e a carta, entre o caso e o poema, entre todas as combinações possíveis — vemos apenas superfícies vazias. A fotografia não é desdobrável: usada como matéria narrativa, leva inevitavelmente à realização de um documentário composto por cenas paradas, descontínuas.

Uma das primeiras decisões foi a de compor uma coleção de fotos que se organizasse pela inversão cronológica. Iniciamos com as últimas fotos de Ana Cristina e voltamos no tempo até o primeiro registro fotográfico de sua vida.

A razão dessa tomada de partido tem a ver com algo muito pessoal: sinto-me sempre traído pelas fotobiografias que me cativam com o desenrolar da vida da personagem, e quando meu amor já está consolidado, empurram-me para fora com a irrupção final da morte. Sei que ali se obedece ao fluxo do tempo e à inevitabilidade de seu limite. Mas por que a narrativa biográfica deve sujei­tar-se às leis de um destino que não vigora no universo autônomo da escrita? Assim, valendo-me dessa liberdade, nesta biografia ninguém morre no fim. A morte se faz presente antes mesmo de abrirmos este livro: ainda na capa, o nome da fotobiografada remete a seu desaparecimento. E justamente porque a morte paira sobre cada página, óbvia demais, não quis que se demorasse em nenhuma delas como um fato delimitado no tempo e no espaço.

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À esquerda: com a avó materna, Maria Luiza, Niterói, novembro de 1954. Foto de Flávio Cruz. À direita: com seu irmão, Flavio Lenz, 9 de setembro de 1955. Fotógrafo não identificado. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

A fim de cruzar narrativas à narrativa que ia compondo com as imagens, pedi a alguns amigos de Ana — Heloisa Buarque de Hollanda, Armando Freitas Filho, Christopher Rudd, Clara e Francisco Alvim — e a seu irmão, Flavio Lenz, que escrevessem motivados pela intimidade; enquanto a outros — Marcos Siscar, Laura Liuzzi, Elizama Almeida, Leonardo Gandolfi, Alice Sant’Anna, Mariana Quadros — caberia uma aproximação da personagem sem lembranças do vivido. Todos eles, cada um a seu modo, inventaram com seus olhares o tempo presente destas imagens.

Espero que este álbum de “inconfissões” espalhe e confunda os rostos, as palavras e os traços de Ana Cristina Cesar como matérias para muitos outros narradores. São, enfim, máscaras. Ana atrás dos óculos e do bigode.

MAIS

Um caderno de Ana Cristina Cesar: Poesia e inspiração minha

Áudio da conferência realizada em 1983 com Ana Cristina Cesar

As palavras da menina Ana C.

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