Combinando sons e histórias – quatro perguntas para Carlos Sandroni

Quatro perguntas

30.12.14

Se tivesse escrito apenas Feitiço decente (Zahar), publicado em 2001 e relançado em versão atualizada em 2013, Carlos Sandroni já teria garantido um lugar de destaque na historiografia da música brasileira. Seu livro explica em detalhes o salto que ocorreu na década de 1920 do samba amaxixado para o samba tal qual se consagrou, gestado no bairro do Estácio, no Rio. Mas Sandroni participa de muitas outras pesquisas, sobretudo ligadas às músicas da tradição oral nordestina. Ele mora há 17 anos no Recife, onde dá aulas, e também trabalha em João Pessoa.

E há seu lado compositor, agora de novo realçado graças ao CD Sem regresso, que pode ser ouvido e comprado no site do artista (www.carlossandroni.mus.br). São 14 faixas cobrindo a produção das últimas três décadas. Uma delas é “Outros quinhentos”:

Sandroni diz nesta entrevista que, seja como pesquisador ou como compositor, está sempre buscando combinações de elementos que resultem em histórias interessantes e, muitas vezes, pouco exploradas.

1. O CD reúne composições feitas ao longo de três décadas. Seria “O melhor de Carlos Sandroni”? Ou qual foi o critério de seleção? 

A seleção foi intuitiva. Se são minhas melhores músicas não sei dizer, mas algumas delas, como “Pão doce” e “Falta um pé”, estão entre as que mais repetidamente toquei ao longo deste tempo. Em todo caso, entre as músicas antigas, incluí as que mais me pareceram “presentes” neste momento, as que estão mais “perto de mim”, para citar o verso de Antonio Maria sobre o Recife, onde moro. E no caso das músicas mais novas, que são poucas, nem precisei escolher: entraram todas! 

2. Você é respeitado como musicólogo, autor de pesquisas importantes. Como seu lado de pesquisador influencia o de compositor e vice-versa?

A influência, se existe, é muito indireta. Pra mim, até hoje, sempre foram coisas muito separadas. O ponto comum que vejo é o elemento de criação, que é mais óbvio no compositor, mas que sinto no pesquisador também. É o interesse em criar algo interessante, seja em forma de artigo ou de canção. E depois, minha obsessão por burilar, por dar bastante tempo pra achar as frases certas, para encontrar a melhor expressão que consiga.

3. Você é um carioca que escreveu um livro fundamental sobre samba, Feitiço decente. Mas há 17 anos vive no Nordeste. Quais são os principais pontos de contato entre as músicas tradicionais do Rio e as nordestinas, sobretudo de Pernambuco?

Em Pernambuco me interessei primeiro pelas músicas de tradição oral, como o maracatu, o coco, o cavalo-marinho. Eu vinha de um trabalho de pesquisa sobre discos, que deu origem ao livro que você citou. E no Nordeste trabalhei sobre músicas que eram, até recentemente, distantes desse mundo do disco, da mídia. O ponto de contato, acredito, é que todas essas formas de expressão participam de uma grande conversa musical e lírica sobre nossa sociedade e nosso país. A chamada “música popular” foi, pelo menos até o final do século XX, uma grande reelaboração criativa de formas que tinham uma base “folclórica”, como se dizia: o samba principalmente, mas também o choro, o coco, as marchas de ranchos e outras agremiações carnavalescas… Por outro lado, essas músicas “tradicionais” do Nordeste estão agora em pleno contato com todo tipo de mídia eletrônica: maracatus têm web-pages, coquistas gravam CDs e disputam espaço nos palcos e turnês. Nem sempre em boas condições, infelizmente… Mas o fato é que a música “popular” e a “tradicional” não são mundos separados como se pensa às vezes, são áreas em constante transformação mútua. Rio e Pernambuco também entram nesse jogo: há excelentes escolas de samba em Recife e, desde os anos 1950 pelo menos, também se toca frevo no carnaval de rua do Rio.

4. Suas músicas não têm o que se convenciona considerar perfil comercial. Suas pesquisas também não. Como você, que vem de uma família de artistas, entende a dedicação à música e à arte em geral?

Minha dedicação à pesquisa em música pode ser ilustrada por uma piada que ouvi recentemente. É conhecida a definição de música como “a arte de combinar sons”. Pois um maestro diz: “Somos músicos, não é?”, e sua banda responde: “SOMOS!!”; e ele retoma: “E o que queremos então??” “ENSAIAR!!!”; “Então (conclui ele triunfante), nos encontramos segunda-feira, às 10h da manhã, na sede da banda?” Mas todos respondem ao mesmo tempo: “Segunda-feira não posso!”, “Posso segunda, mas só de tarde!”, “Mas eu só posso às terças e quintas!”, e por aí vai. Conclusão da piada: “Música é a arte de combinar… horários!”.

A conclusão que tiro, quanto a mim, é que música é a arte de combinar e descombinar pessoas através de sons. Ou, pelo menos, essa é a perspectiva etnomusicológica com que me identifico. Gosto de fazer música e de fazer pesquisa em música como parte dessa reflexão e dessa prática de combinação e descombinação de pessoas sonoras. 

No caso da pesquisa, a relação com o “comercial” é muito simples, pois as pesquisas que faço são subvencionadas, na maior parte, por recursos públicos, através de órgãos de fomento, instituições de ensino, renúncia fiscal etc. Ou seja, não estão numa esfera comercial. No caso da composição e da interpretação, é um pouco diferente, embora haja uma esfera grande de produção artística, na qual me incluo, que se beneficia de renúncia fiscal ou fundos públicos de cultura. Mas gostaria muito que minhas composições fossem “comerciais” no sentido de interessar a muita gente, que muita gente se interessasse por elas a ponto de pagar por ouvi-las. Mas, por enquanto, não as faço com esse intuito em mente. Os padrões atuais do que parece interessar a uma quantidade realmente grande de pessoas não se parece muito com o que tenho vontade de fazer, e sendo professor não dependo disso pra viver. Mas quem sabe, não é? Há tanta gente no Brasil e no mundo pra se combinar e descombinar… Alguns horários às vezes coincidem.

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