Da difusão ao descompasso

Séries

21.01.13

Esta é a terceira parte da série “Escolas e samba: Crônica de um divórcio anunciado”. Clique aqui para ler o texto anterior.

 

Cartola e Nelson Cavaquinho (os dois à direita) na Mangueira em 1978:
representantes das origens na era do show business.(Marcel Gautherot/Acervo IMS)

Por força da experiência carioca, já na década de 30, o fenômeno escola de samba disseminava-se pelo Brasil. Então, algumas modalidades de folguedos em cortejo já praticadas passaram a receber a denominação consagrada na Capital Federal.

Assim, em Minas Gerais, já em 1937 a capital, Belo Horizonte, teria visto nascer a Escola de Samba Pedreira Unida, num pioneirismo contestado pela Turunas de Riacho, de Juiz de Fora – cidade mais próxima do Rio – que reivindica, como ano de sua fundação, o de 1934.

Na cidade de São Paulo, na década de 1940, no tradicional bairro do Bexiga, o antigo cordão Vai Vai transformava-se em escola de samba. Logo depois, o mesmo ocorria com o Nenê da Vila Matilde e o Lavapés, na Baixada do Glicério. Em Porto Alegre, já em 1940 nascia a Bambas da Orgia.

Em Florianópolis, importantes agremiações do samba são as escolas Protegidos da Princesa, fundada em 1948, a Embaixada Copa Lord e a Coloninha. Em Curitiba, a primazia fica com a escola de samba Colorado, fundada em 1946. Em São Luís do Maranhão, uma das mais antigas escolas é a Favela do Samba, de 1950. Na capital da Bahia, brilharam, na década de 1960, entre outras escolas, os Diplomatas de Amaralina e a Juventude do Garcia, mais tarde absorvidas pelos blocos de índios, antecessores dos atuais blocos-afros.

Observemos que, em todas as cidades e localidades onde o fenômeno ocorreu, seja no âmbito das escolas ou em redutos independentes, a cultura do samba se faz sempre presente, em forma de pagodes, rodas e samba e outras modalidades e expressões de arte e socialização.

Voltando ao Rio de Janeiro, vamos ver que por vol­ta da década de 1970 as es­co­las co­me­ça­ram a per­der o ca­rá­ter de ar­te ne­gra pa­ra se trans­for­marem em ex­pres­são ar­tís­ti­ca ­mais descompromissada, eclé­ti­ca e uni­ver­sal, na qual ape­nas al­guns pou­cos ele­men­tos re­me­tem ao seu sig­ni­fi­ca­do ori­gi­nal. Essa gradativa incorporação do desfile das escolas ao universo do show-business correspondeu, em certa medida, aos anseios de aceitação do samba pela sociedade abrangente, manifestados pelos sambistas desde os primeiros tempos. Entretanto, a inclusão apenas pelo lado carnavalesco levou o samba das escolas a se distanciar de seus fundamentos norteadores.

Até os primeiros anos da década de 1960 – quando a bossa nova ainda era chamada pelos pesquisadores de “samba moderno”, e a sigla MPB ainda não tinha sido inventada — o chamado “samba de morro” (depois, dito “de raiz”) ainda expressava uma cultura, ou seja, comportava um conjunto de traços distintivos, herdados da tradição. O sambista, em geral, tinha vestuário, fala, gestual, comportamento, hábitos etc. bem característicos. E o samba era expressão artística no sentido mais amplo, envolvendo criação e performance, inclusive coreográfica.

 

Bateria nos anos 1960, quando era possível distinguir com nitidez o som de cada escola
(Marcel Gautherot/Acervo IMS)

Tudo isso foi se enfraquecendo à medida que os núcleos e redutos do samba se modificavam, com o distanciamento entre as escolas e suas comunidades; com a opção pelo espetáculo em prejuízo do espírito associativo. E aí até mesmo a dança foi esquecida; ou transformada em clichê.

Do ponto de vista musical, o período que vai de 1956 até o final da década seguinte marca a grande época dos sambas de terreiro e o apogeu do samba-enredo clássico – ao jeito de Silas & Mano Décio, Candeia & Valdir 59, Noel & Nescarzinho, Padeirinho, Jurandir, Toco etc.

Em 1968 era colocado no mercado o primeiro LP anual de sambas-enredo.  Nele, que focalizava apenas as principais escolas do grupo de elite, inseriram-se, como complemento, faixas com o ritmo de cada uma das baterias. Magnificamente gravadas ao vivo, nos terreiros das escolas, e com excelente qualidade para os padrões da época, essas gravações são, hoje, peças de alto valor. Através delas, o ouvinte poderá perceber, com nitidez, as enormes diferenças entre andamentos, cadências, levadas, timbres, afinações de cada uma das escolas e suas baterias. E eram essas diferenças que faziam “a diferença”. A ponto de qualquer apreciador, só um pouquinho informado, poder adivinhar, de olhos fechados, de que escola se tratava. Com o tempo, essa identidade também foi se perdendo, restando hoje poucas diferenciações entre cada um dos grupamentos.

Acrescente-se a isso o fato de que as disputas internas pelo samba-enredo passaram a ganhar dimensões bem maiores e diferentes: à glória de ser campeão, que se restringia ao âmbito das escolas, somavam-se agora as possibilidades de sucesso comercial. E isto porque os sambas-enredo já eram majoritariamente executados na programação das estações de rádio e cantados também nos salões, durante o carnaval, reduzindo ao mínimo a execução das marchinhas e sambas de compositores do meio radiofônico – o que, hoje, também já é passado. E, assim, mais uma vez, voltamos no tempo.

A década de 1910, como já vimos nesta série de textos, marca o início da produção industrial e da comercialização do samba. Mas a rigor, em termos gerais, a exploração econômica da musica já existia desde a criação, no país, das primeiras empresas “impressoras de música”, denominação que definia, então, o que hoje se conhece como editoras musicais. Antes do disco, do rádio e da televisão, era assim, efetivamente, que acontecia o consumo da criação musical: o autor criava uma obra e o público tinha acesso a ela através de partituras, impressas e vendidas pela editora. Essas partituras, então, ganhavam vida, no âmbito doméstico (toda residência de classe remediada ou alta tinha um piano) ou em locais públicos.

Com o advento do disco, a democratização dos aparelhos de reprodução sonora e seu aprimoramento, tudo foi mudando. As grandes editoras foram deixando de ser meras publicadoras e vendedoras de partituras impressas, para atuarem não só como procuradoras e intermediárias dos autores, mas também como legítimas titulares dos direitos cedidos pelos autores mediante contratos. Nessa prática, bastante lucrativa, se encerra uma das grandes questões do direito autoral hoje em todo o mundo. Inclusive, é claro, no mundo do samba.

Segundo relatórios produzidos pelo atual sistema de gestão autoral musical brasileiro, o samba é hoje um dos gêneros ou estilos de música menos aquinhoados. Tomando por base o ano de 2010, no ranking de arrecadação de compositores, o mais bem colocado do segmento samba ocupa apenas o 170º lugar, seguido por outro na 182ª posição e outro mais na 208ª. Na frente deles, vêm principalmente compositores do amplo espectro da música pop (de consumo de massa, de base anglo-saxônica, difundida em escala global), o qual hoje engloba até mesmo os estilos rotulados no Brasil como “sertanejo”, gospel e forró.

Para entender esse descompasso, é preciso saber que a infra-estrutura mercadológica de nossa música popular se assenta em grandes conglomerados de mídia, que controlam ou procuram controlar toda a cadeia de produção, da criação ao consumo. Nessa cadeia incluem-se desde gravadoras, editoras musicais e provedores de internet até redes nacionais de TV aberta e por assinatura; emissoras de rádio, jornais, revistas etc. Então, como resultante dessas gigantescas estruturas, vamos encontrar cada segmento do mercado musical brasileiro associado a um estilo de vida e de consumo. E o “povo do samba”, majoritariamente afrodescendente, foi historicamente desqualificado como consumidor, numa visão amplamente desmentida pelo Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil (2009 – 2010), publicado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que só agora parece começar a ser revista.

Mas os malandros e políticos, embora com outro perfil, ainda continuam fora do compasso do samba.

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