Dia de domingo – Entrevista inédita com Reynaldo Jardim

Literatura

02.02.11

O jornalista e poeta Reynaldo Jardim, morto hoje aos 84 anos, foi o criador do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que circulou entre 1956 e 1960. O suplemento é um marco do jornalismo brasileiro por ter sido um dos propagadores do concretismo e pelos experimentos gráficos e polêmicas que abrigou em suas páginas. Na entrevista a seguir, inédita, Jardim fala sobre o processo de criação do SDJB. A conversa foi conduzida em 2007 por Daniel Trench, diretor de arte da serrote e autor de mestrado na ECA-USP sobre o assunto.

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Qual foi exatamente seu papel na reforma do JB?

O Amilcar fez o essencial no Jornal do Brasil, quer dizer, fez o primeiro caderno, o jornal propriamente dito. Eu fiz o supérfluo, o suplemento cultural, o Caderno B. Nessa parte ele não interferiu, eu também não interferi na primeira parte. A história toda da reforma começa? Energia não se perde, energia se transforma. A energia radiofônica se transformou em energia impressa, gráfica. O programa que eu fazia na rádio se chamava Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, não existia suplemento no Jornal do Brasil, era totalmente virtual. E era sobre crítica literária, poesia.

Isso em que ano?

Não me pergunte datas, que nisso eu sou péssimo. Mas eu saí do jornal em 64, no ano do golpe, trabalhei onze anos no jb; tira onze pra trás, foi quando eu entrei lá [1953]. Eu fazia esse programa na rádio quando entrei. A condessa Pereira Carneiro, dona do jornal e uma pessoa muito sensível, ouvia o programa e me convidou para fazer uma coluna aos domingos no Jornal do Brasil, sobre literatura. Pus o nome de Literatura Contemporânea. Eram notas e pequenas entrevistas, tal. Em um mês, tomei conta da página. E em uns três meses, tomei conta do caderno. Então, o caderno passou a se chamar Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. A minha primeira intenção era ocupar espaço, depois era qualidade. Daí foi entrando Mário Faustino, Ferreira Gullar, os irmãos Campos, Mário Pedrosa, Assis Brasil, Oliveira Bastos, e a equipe foi sendo formada. O Oliveira Bastos, o Gullar e o Carlinhos de Oliveira entraram praticamente juntos. Eles eram muito pobres nesse tempo, moravam numa pensão na Lapa, os três num quarto só. O Suplemento Dominical foi adquirindo formato de vanguarda com o aparecimento do movimento de poesia concreta. Foi o Suplemento Dominical que deu repercussão nacional para o movimento de poesia concreta. Fizemos várias exposições de arte e poesia concreta. Então houve a cisão, capitaneada pelo Gullar.
O Gullar de um lado e o pessoal de São Paulo de outro. Os paulistas eram muito ortodoxos. A verdade é que a teoria deles não corresponde à melhor poesia deles, que é neoconcreta. Mas a vantagem do pessoal do Rio é que ela [a poesia] é muito mais prolixa, tem muito mais área de atuação.

O Suplemento Dominical chega a ser um campo de debates entre paulistas e cariocas?

Não chegou a ser debate não, pois o debate foi logo interrompido. Quando começou o debate, o pessoal de São Paulo brigou com o Gullar e deixou de colaborar. Ficou só o pessoal do neoconcretismo. Foi uma pena, porque eu gostava muito deles, gosto muito deles, principalmente do Décio.

A reforma começa pelo Suplemento Dominical?

A reforma total do Jornal do Brasil começa pelo Suplemento Dominical. Era uma coisa estranha, um suplemento concretista dentro de um jornal de classificados. Eu e o Gullar começamos a conversar com a condessa para ela mudar o jornal também. Eu até desenhei algumas primeiras páginas do jornal, mas isso não foi usado. A condessa incentivava. Daí ela chamou o pessoal do Diário Carioca, o Jânio de Freitas, o Tinhorão, o Gustavo Porté, uma equipe ótima, de copidesque. E o Odylo Costa Filho como diretor. Era todo o pessoal do Diário Carioca, que tinha implantado no jornalismo brasileiro a história do lead. O Luís Paulistano e o Pompeu de Souza. Então essa técnica de imprensa foi transportada para o Jornal do Brasil. Toda matéria passava pelo corpo de copidesques, o texto era entregue ali, e eles reescreviam. Para quê? Pra dar o espírito do jornal, pra manter uma unidade. E eram todos muito novos, pessoas de vinte e poucos anos, e eles escreviam muito melhor do que qualquer outro cara de hoje em dia. Todos que estavam no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Faustino, Gullar, todos abaixo de trinta anos, vinte e cinco, por aí.

Fui o primeiro editor do [José Guilherme] Merquior e do Sérgio Paulo Rouanet. Um dia cheguei lá na redação, e estava lá um garoto sentado. Pensei, esse é o filho do Merquior. Eu tinha a idéia de que o Merquior fosse um senhor, ele escrevia sobre filosofia. E na verdade era o próprio Merquior. O Rouanet era garoto também. Hoje em dia um garoto sai da faculdade e não sabe nada. Eu passei um mês na Folha de São Paulo dois anos atrás para dar uma consultoria à redação. Foi minhas férias. O pessoal todo é recém-saído da faculdade. Há poucos antigos remanescentes. Eu notei uma dificuldade muito grande. E como é tudo novinho, eles se matam de trabalhar, pois querem mostrar serviço. São superexplorados. A informática não sei para quê serve. Se era pra apressar, e o jornal fecha às onze horas da noite ainda, eles acabam trabalhando muito mais, não é?

Voltando ao JB, o Suplemento Dominical era algo independente do jornal? Você tinha total liberdade de ação lá dentro?

Tinha, eu fazia o que queria lá. Quando o Odylo entrou, como o Suplemento Dominical era muito crítico, arrasava mesmo, aparecia Drummond que a gente metia o pau nele, e ele era da entourage cultural da época, ele ficou nosso inimigo. Mas a condessa me adorava, naquele tempo eu dirigia a rádio, fazia a revistinha infantil, o Caderno B. O Suplemento Dominical então estourou e durou até 64, um pouco antes do golpe.

E no Suplemento Dominical o Amilcar não apitava?

O Amilcar era da nossa turma. Amigo, amigo do Gullar.

Mas ele chegou a fazer coisas para o Suplemento Dominical?

Não, ele dava palpite só. Mas o Amilcar era muito amigo meu, eu adorava o Amilcar. Teve até uma época em que o Amilcar se propôs a ficar com o Suplemento Dominical, mas ele chegava lá e já estava pronto na oficina. Então essa história aí de que o Amilcar fez o Suplemento Dominical? ele era o responsável pela parte essencial do jornal, a primeira página, toda a diagramação; ele e o Jânio de Freitas. O Amilcar desenhava, e o Jânio orientava.

Por que o Jânio de Freitas é tão reticente para falar sobre o jb?

Ele não gosta não. Tem tanta versão, entende, e ele foi uma figura tão importante, a figura mais importante do jb. Saiu tanta notícia errada. Teve até um rapaz, o Carlinhos de Oliveira, que veio aqui em casa quatro vezes. Me ouviu um tempão. Escreveu um livro e me mandou. Meu nome aparece dez vezes no livro, dez citações erradas?

Bom, essa é a história do Suplemento Dominical, tem também a história do Caderno B, que é posterior.

O Caderno B coexiste com o Suplemento Dominical?

Sim, por muito tempo. Eu então trabalhava no Caderno B e fazia o Suplemento Dominical. Essas coisas que eu fazia no jornal eram num andar da rádio, quer dizer que não havia nenhum contato com o jornal, com o primeiro caderno, com o Jânio de Freitas, com o Amilcar, entende? Era outro pessoal.

E a diagramação do Suplemento Dominical e do Caderno B era sua?

Era minha, por que eu só sei editar desenhando.

E a ousadia na diagramação do Suplemento Dominical?

Não na primeira fase, em que as oficinas eram péssimas. Eu sempre trabalhei na oficina, junto com o paginador na oficina. Era tudo linotipo, algumas caixas maiores eram em madeira. Aqueles poemas concretos, aqueles quadradinhos, aquilo era uma coisa de louco. Eu gostava de fazer o Suplemento Dominical, era diferente do convencional. Eu até recebi um diploma da oficina, funcionário padrão, não sei o quê. Eu adorava esse pessoal.

Na reforma, a Bodoni foi escolhida como família tipográfica?

É, foi. E foi o Amilcar que comprou. Bodoni era o tipo? Eu gosto mais de Garamond, Garamond é mais requintado. Hoje tem cinco mil tipos diferentes, tudo derivação desse pessoal. É genial. Garamond, Bodoni. Bodoni era o nome dele.

No Suplemento Dominical também era Bodoni?

Era Bodoni. Tinha outros também. Mas era muito feia a tipologia antiga, e era incompleta.

Mas às vezes você usava fonte sem serifa, não?

Às vezes sim, às vezes não. Não gosto muito de sem serifa não, dá uma leitura? gosto mais da serifa.

E o alinhamento à direita na última linha dos parágrafos?

Aquilo é ótimo, né. Eu nunca mais consegui fazer aquilo. Aquilo foi tirado de uma revista argentina. Os computadores hoje não fazem isso. Eu não uso computador, não sei nem digitar.

E como você trabalha hoje em dia?

Eu tenho um mouse-man.

Quem escolhia as fotos no jb?

No primeiro caderno era o pessoal, o Amilcar, o Jânio.

O Amilcar participava?

Participava, claro, ele era o editor gráfico.

No Suplemento Dominical quase não havia foto, as imagens, em sua maioria, eram reproduções de trabalhos. E no Caderno B?

No Caderno B era eu quem escolhia. O Caderno B nasceu assim, ó, não sei se você sabe: já existia o Suplemento Dominical; foi feita a reforma do jornal, do primeiro caderno. O jb tinha dois cadernos: o primeiro e o segundo. O segundo era uma continuação mecânica do primeiro. Imprimia só dez páginas e depois continuava no segundo caderno. Não tinha característica nenhuma, era tudo classificados. Foram separados os classificados em outro caderno, o que acabava valorizando os próprios classificados. Então esse era o caderno C, o de classificados. O A, de atualidades. Daí abriu a brecha, e veio o Caderno B, que era diário. Hoje em dia tem uma página de horóscopo, outra de sociais, não tem mais caderno, entende? Começaram uma boa reforma há pouco tempo, mas já a liqüidaram. Esse novo formato é bonito, mas para jornal novo, não para um jornal que tem cem anos.

Você encontrou resistência para começar o Suplemento Dominical?

Só do dono do jornal, o Nascimento Brito.

Qual você acha que foi o grande mérito da reforma?

Criou-se uma paradigma para a imprensa, né. A imprensa depois do jb não criou mais nada. O Caderno B, então, foi uma coisa que repercutiu no Brasil todo. O negócio é a acomodação, ninguém faz nada atualmente. Uma vez me chamaram, eu estava no jb, ou tinha saído, eu não sei. Não, tinha saído, sim, estava desempregado, na lista negra, foi no ano do golpe. Daí me chamaram em Manaus para tocar um jornal lá. O cara ia me mandar uma passagem de avião. Eu não ando de avião há muito tempo. Já viajei muito, mas não ando mais. Ele disse: “Não tem jeito, tem que vir de avião”. Então eu disse: “Não vou então”. Daí ele me ligou na semana seguinte e disse para eu ir até Belém, ele também tinha um jornal lá. A estrada Belém-Brasília estava em obra, seis dias para chegar lá, num ônibus horrível que só parava em espelunca. Fui pra Belém, fiquei lá uns três ou quatro meses. Mas eu cheguei lá, e o dono disse: “É o seguinte, eu quero igual ao jb. Eu disse então para ele copiar: “Pega um exemplar e faz igual”. Então criou-se um modelo que todo mundo copia, entende.

E o que definia esse modelo?

Não tinha mais fio?

O Diário Carioca também era econômico no uso de fios?

O Diário Carioca era mais ou menos bom, mas não era um padrão que todo mundo seguisse não.

O que mais?

A tipologia, uma família única, era Bodoni da cabo-a-rabo. Nos outros era tudo muito misturado. Também os jornais não eram desenhados antes. O chefe de redação pegava uma matéria e ia colocando, no alto a primeira, embaixo a segunda. E depois o caras lá de baixo montavam. O chefe da redação só marcava se era no alto da página ou no pé de página. Era uma tradição, não tinha diferença de jornal para jornal. E lá no jb passou a ser desenhado, contabilizando os toques.

Isso foi o Jânio que trouxe?

Não, foi a equipe. Ninguém faz uma reforma sozinho. O Jânio foi fundamental, o Amilcar foi fundamental, eu fui supérfluo. Alguém tem que fazer o supérfluo.

A sua participação foi fundamental nesse processo?

Eu passei seis anos fazendo o Suplemento Dominical, brigando com o dono do jornal. Toda semana ele queria acabar [com o suplemento]. Dizia que a gente usava muito branco?

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