Diante da memória dos outros

serrote

16.03.11

Depois de virar moda, Susan Sontag virou personagem. Sempre Susan, de Sigrid Nunez, tem titulo de bolero e, pela leitura do que foi antecipado na revista do New York Times, é mais combustível para a usina sem fim das memoir – gênero  que o mercado americano inventou para relatos em primeira pessoa que não chegam a ser autobiografias ou ensaios pessoais, dado os baixos teores (ou total ausência) de reflexão. Mas não deixa de ser curioso que, pela segunda vez em poucos meses, me passe diante dos olhos um testemunho da convivência com Sontag – o outro é Desperatly seeking Susan, capítulo (disponível na íntegra aqui) do ótimo livro The professor  – a sentimental education, de Terry Castle.

Sigrid Nunez conheceu Susan nos anos 1970. Ela era uma jovem assistente editorial na New York Review of Books, publicação na qual Susan era uma estrela. Debilitada pelo primeiro enfrentamento com o câncer,  que resultaria no livro Doença como metáfora, Susan contratou Sigrid como secretária temporária, ditando a ela suas cartas. Mas logo deu uma de cupido ao aproximá-la de seu filho, David Rieff. A jovem candidata a escritora mudou de mala e cuia para o movimentado apartamento de Susan e lá estabeleceu uma relação pouco convencional com o namorado e a mãe dele.

Terry Castle encontrou Susan pela primeira vez nos anos 1990. Professora de Humanidades em Stanford, dedicada a estudos de Gênero e autora de um ensaio sobre literatura e lesbianismo, aproximou-se de Susan na qualidade de fã. E com ela estabeleceu uma relação longa e sobressaltada, cimentada sobretudo por sua adoração incondicional e submissa – retribuída ao sabor dos caprichos de uma intelectual cada vez mais mercurial e absorta em suas certezas, que não eram poucas.

Uma e outra nutrem uma relação de amor e ódio com sua personagem. Ambos textos têm, na verdade, um leve (às vezes nem tanto) sabor de vingança. Os motivos são os mesmos: a loquacidade que se impunha aos interlocutores, a alternância aleatória de humor, a abundância de opiniões, as crises de indignação por tudo e por nada. Um sontagcentrismo radical, enfim. No caso de Sigrid, Susan dá palpite em tudo, chega sugerir que o jovem casal dedique-se ao sexo oral como método contraceptivo e não hesita em entrar no quarto dos dois à noite para saciar sua necessidade de um interlocutor. Terry Castle, por sua vez, tinha de estar completamente à disposição de Susan a cada visita que esta fazia a São Francisco, numa mistura de dama de companhia e motorista. E tinha que se conformar em ouvir as imprecações da ensaísta, inconformada por não ter o reconhecimento que esperava como ficcionista, apesar de o chatíssimo Na América ter levado o National Book Award.

Philip Lopate, mestre do ensaio pessoal, dedicou há dois anos um livrinho a ela, Notes on Sontag. Feito de encomenda para a Princeton University Press, é uma apreciação, ainda que idiossincrática,  da obra. Mas, inevitavelmente para um autor como Lopate, as considerações pessoais seguem a mesma batida: Sontag sendo desagradável, reclamando de uma “dona de casa” que ele tinha escalado para acompanhá-la numa universidade, etc.

As anedotas podem suceder-se por mais alguns posts. Mas o que interessa é ambigüidade e o alto preço que Susan Sontag pagou por ter se tornado quem foi, tema de uma biografia fofoqueira que odiava. Consagrada pelo culto a autores “densos” como Beckett, Walter Benjamin ou Robert Walser, esnobemente hostil ao que via como  “vulgaridade”, terminou virando cartoon da New Yorker ou, como lembra Lopate, ganhando uma homengem em Gremlins 2 – um dos monstrinhos resume assim a reivindicação de seu bando: “Queremos civilização: música de câmara, Convenção de Genebra, Susan Sontag!”. Mas o pior ainda viria: a posteridade e, com ela, as lembranças dos outros. Definitivamente fora do controle de seu ego avantajado.

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