A eficiência de um insulto depende do contexto e da performance. Ainda que sejam uma das marcas da interação entre estranhos nas redes sociais, os turpilóquios têm uma história bem mais antiga e letrada do que se imagina. Muito provavelmente, os insultos mais criativos se dissolveram logo depois de pronunciados: os melhores, além de perfurantes, são espontâneos. No entanto, ainda que muitas vezes preteridos pelo registro das palavras elevadas, heroicas, belas, convincentes, profundas, emocionantes – e mesmo as trágicas e ordinárias – alguns insultos memoráveis nos foram legados. Sua diversidade, portanto, se faz digna de exame.
Parricida
Os tradutores, os santos e os escritores são hábeis artífices do insulto. Após ser acusado de herético pelo ex-amigo Tirano Rufino (ca. 345-410) por conta de sua tradução do teólogo Orígenes, Sofrônio Eusébio Jerônimo (ca. 347-420), atualmente mais conhecido como São Jerônimo e patrono dos tradutores, publicou uma célebre resposta, a Apologia contra Rufino.
Entre argumentos e exemplos, Jerônimo ressalta que Rufino e sua turma eram uma matilha de cães. Séculos mais tarde, Lutero chamaria os seus detratores de “asnos”; o poeta Ezra Pound usaria o mesmo termo para desancar um crítico, e o também poeta Bruno Tolentino chamaria o concretista Augusto de Campos de “baleia encalhada nas praias da História”. Na China, ser chamado de “tartaruga” é ofensa gravíssima, assim como “vaca”, na França. No Brasil, insultamos com “piranha”, “macaco” e “anta”, mas não com “jacaré”, “mico” e “capivara”.
Mas Jerônimo vai além, e metralha uma série aparentemente aleatória de diatribes: “homicida, adúltero, sacrílego, parricida”. Enquanto “cão” ainda sobrevive, não usamos nenhuma dessas palavras, pois ninguém se ofenderia, a não ser que estivesse rigidamente atado aos tabus da honra e da religião. Diz Bill Bryson, no livro Mother Tongue, que “em quase todas as culturas, xingar envolve ao menos um entre os seguintes quesitos: depravação, proibição (particularmente o incesto) e o sagrado, geralmente os três”. Na época de Jerônimo, uma maneira de ofender uma pessoa era por em cheque, ainda que simbolicamente, a sua honra e devoção. Em nosso gosto contemporâneo, entretanto, os principais insultos são escatológicos.
Boca de merda
Cerca de um milênio depois, outros santos e tradutores iniciaram uma querela semelhante, que seria conhecida como Sola Fides. Não convém entrar em seus méritos específicos; importa apenas que foi protagonizada por Martinho Lutero (1483-1546), cuja nova tradução da Bíblia causou a ira das autoridades eclesiásticas, entre elas o filósofo Thomas More (1478-1535), que, como Jerônimo, também seria canonizado. Numa virulenta epístola, a Responsio ad Luterum, o inglês manda o alemão jogar de volta em sua “boca de merda, sem dúvidas a fossa de toda a merda, toda a imundície e a merda que sua condenável podridão vomitou”; uma ofensa assombrosa, inesperada como um acidente de trânsito.
Quase nunca pensamos em dejetos quando falamos “merda”, assim como praticantes do sexo anal usam um tom grosseiro ao mandar que outros os imitem, e ateus convictos volta e meia utilizam exclamações religiosas. Em 1972, o comediante George Carlin listou as sete palavras que você não pode falar na televisão: “merda, mijo, foder, boceta, viado, filho da puta e tetas”. Quanto mais descontextualizado, mais vazio – vale apenas a intenção: seu significado imediato é a intensidade.
Literalmente, são partes corpo ou secreções corporais; potencialmente, as dirty words se referem a qualquer coisa ou pessoa, e às vezes demoramos para relacioná-las a seus significados originais. Por isso, é irônico que, quando de fato precisamos nos referir a eles, usamos palavras mais brandas e formais – fezes, urina, sexo, vagina, homossexual, prostituta e seios.
Sevandija
Enquanto o palavrão pode ser íntimo – xingamos sozinhos ao tropeçar, comemorando um gol, transando –, o insulto é dirigido a alguém. E assim como há um léxico familiar, que só faz sentido a iniciados, há o insulto familiar, que não ofende ninguém de fora. No conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa, um trangalhadanças mentecapto e belicoso procura o senhor mais douto das cercanias para lhe indagar o significado do vitupério que batiza a narrativa. Precisava descobrir se o termo era “caçoável”, e então decidir se pouparia o maledicente. Daí a questão: qual a importância da compreensão do interlocutor?
O compreensível “filho da puta”, por ilibada que seja a sua mãe, é muito mais ofensivo que o hermético “sacripanta”, ainda que este insulto se aplique ao ofendido. Numa breve passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o professor Barata esbraveja com sua turma: “sevandijas, capadócios, malcriados, moleques”. Poderia continuar: energúmeno, sicofanta, troglodita, paquiderme, dendroclasta, e mais uma infinidade de sesquipedais em desuso. Muitos provêm de idiomas antigos, e mesmo traduzidos, não fazem muito sentido – “sicofanta” é aquele que denuncia um ladrão de figos; “capadócio”, quem nasceu na Capadócia, “paquiderme”, de pele grossa e rugosa, como os elefantes.
E é exatamente a dificuldade de compreensão que os torna ofensivos – zomba-se, ao mesmo tempo, da ignorância do interlocutor. No conto de Rosa, o doutor tenta salvar a vida do ofensor com uma resposta um tanto vaga: “Famigerado é inóxio, é ‘célebre’, ‘notório’, ‘notável’” – o contexto lhe pedia parcialidade.
Comedor de melancia
O insulto alimentar, assim como o preconceito linguístico, é uma forma de ressaltar uma pretensa superioridade da própria cultura. É um insulto coletivo – ataca-se não só a pessoa, mas seu grupo. Em Guerra e paz, de Tolstói, um tenente-coronel reclama da “desgraça desses alemães comedores de salsicha!” Também podemos encontrar ataques a quem aprecia lagosta, caramujos, cachaça, repolho, queijo, batatas, arroz, peixe cru, leite achocolatado, cuscuz, farofa, pera, leite.
Isso muda a cada cultura. No Brasil, a melancia é apenas o alimento preferido da Magali; nos Estados Unidos pode ser um estereótipo racista tão grave quanto Jim Crow, o black face e a palavra nigger, por remeter ao fim da Guerra Civil, quando os escravos libertos viviam do fruto. A ofensa é melhor entendida em cartuns como este:
Não por acaso, no romance O vendido, em que o americano Paul Beatty escracha os tropos racistas do país, o protagonista é um negro que usa trabalho escravo para produzir as melancias mais saborosas do mundo.
Em tempos de multiculturalismo, no entanto, o insulto alimentar perde sua potência. O estímulo, hoje em dia, é exatamente para que se deguste iguarias exóticas. A mesa é a maneira mais prática de se conhecer outras culturas; e, afinal, quem deixaria de provar algo apetitoso por nacionalismo? Mas não se engane, o insulto alimentício ainda existe. Não se esqueça do creme de avelã com chocolate que se transformou no contraponto perfeito a qualquer raiz.
Comunista
Atualmente, nada mais ofensivo que zombar de uma pessoa exatamente pelo que ela é. Se for cega, o pior insulto é a lembrança de sua deficiência; e chamar um gay de “gay”, como vilipêndio, é atribuir um valor negativo à homossexualidade. Em resposta ao insulto público de Tolentino, Augusto de Campos chamou o poeta de “salta-pocinhas”, uma maneira arcaica e velada de se referir a homens homossexuais. É ofensivo pela situação em si, pela falsa discrição, e por Tolentino ser, de fato, homossexual, o que em si nada tem de desabonador.
As palavras inofensivas se aquecem com os anos, enquanto outras se abrandam, e o que é chocante para uns pode ser o orgulho de outros. Assumir o insulto é uma maneira de derrotá-lo. “Tudo é palavrão e nada é palavrão”, explica Millôr Fernandes. “Palavras e expressões tais como ‘tira, bota, mais, mexe, aí não, é muito grande, que coisa enorme, etc…’ não são palavrões e, pelos critérios da censura, posso publicá-las livremente, que é o que estou fazendo. Se o leitor achou essas palavras indecentes é porque colocou-as num contexto de sua própria criação.” A questão mais importante é o modo e a situação, é a inflação ou o esvaziamento da palavra. Que o diga o famigerado general Villas Bôas, surrealmente xingado de “comunista” há algumas semanas.