O ano cinematográfico começa bem. Dois filmes de pungente atualidade estão em cartaz nos cinemas brasileiros: O que está por vir, de Mia Hansen-Løve, Urso de Prata de melhor direção em Berlim, e Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, Palma de Ouro em Cannes. São bem distintos em termos de temática, ambientação e estilo, mas talvez haja entre eles um ponto comum: a angústia diante dos rumos que a vida está tomando na Europa e no mundo.
Kafka proletário
Em plena forma, o veterano Loach encena a saga de Daniel Blake (Dave Johns), um marceneiro de Newcastle que, impedido de trabalhar por problemas cardíacos, busca no labirinto tecnocrático britânico um meio de receber o auxílio-saúde a que, teoricamente, teria direito. Em sua odisseia por guichês e repartições ele conhece casualmente a desempregada Katie (Hayley Squires), jovem mãe solteira de duas crianças, a quem passa a ajudar como pode.
Estamos em pleno território de Ken Loach: personagens à margem de uma sociedade injusta, tentando sobreviver com base em valores como integridade e solidariedade. “Ah, mais um apelativo libelo anticapitalista”, dirão os apressados. Devagar com o andor, que há mais coisas para ver aqui.
Um aspecto interessante do filme, que acentua sua atmosfera kafkiana, é o descompasso tecnológico entre o protagonista e o mundo à sua volta. Blake é um artesão, alguém capaz de criar com as mãos objetos ao mesmo tempo belos e úteis, quase uma encarnação do espírito do movimento arts and crafts, surgido na Inglaterra no século XIX. Em decorrência, sente-se aturdido num mundo de relações terceirizadas, mensagens telefônicas automáticas, currículos virtuais.
Loach explora com habilidade o que há de trágico e de cômico nessa inadequação, e talvez esteja nisso o que o filme tem de mais forte. Já a relação de Blake com Katie, sua tentativa de impedi-la de cair na prostituição, sua relação com as crianças, tudo isso está a um passo do lugar-comum. Mas, pensando bem, é dos “lugares comuns” (sem hífen) que costuma tratar o cinema do diretor, isto é, dos lugares por onde circulam as pessoas anônimas, e pelos quais geralmente passamos sem dar atenção.
Talvez não seja casual que tantos de seus filmes tenham no título os nomes de seus personagens: Meu nome é Joe, Uma canção para Carla, À procura de Eric, Jimmy’s hall. É preciso nomear os anônimos, dar-lhes existência e cidadania. Todo o cinema de Loach, de certo modo, consiste nisso, em dar a ver vidas comuns atravessadas pelas contradições e injustiças do mundo (o que não é novidade, desde o neorrealismo italiano). O que eventualmente enfraquece esse gesto artístico é a ênfase didática: por exemplo, no caso de Eu, Daniel Blake, o discurso final da personagem Katie, que repete e dilui tudo o que vimos antes.
Ainda assim, há classe, há força, e sobretudo há coerência e integridade nesse cinema.
A filosofia e a vida
Se o mundo de Eu, Daniel Blake é o mundo do trabalho braçal, o de O que está por vir é o do trabalho intelectual, do pensamento sobre o passado, o presente e o futuro da humanidade. A protagonista, Nathalie Chazeaux (Isabelle Huppert), é uma professora de filosofia de meia-idade, às voltas com um casamento agonizante, uma mãe depressiva, um sistema educacional em crise, um establishment intelectual cada vez mais governado pelo mercado e, principalmente, com o questionamento de sua postura por um ex-aluno brilhante (Roman Kolinka), membro de um coletivo anarquista e adepto da ação direta.
Com segurança e fluência notáveis, a jovem diretora Mia Hansen-Løve organiza uma narrativa episódica, cheia de linhas de fuga, sem perder jamais de vista a questão central que a move: para que serve, afinal, a filosofia? Como “consolação”, refúgio do indivíduo pensante contra as agruras do mundo? Ou, ao contrário, para entender melhor esse mundo e, assim, poder agir para transformá-lo?
“Meu papel é ensinar meus alunos a pensar por conta própria”, define e defende-se a protagonista. O próprio filme, ao deixar várias pontas em aberto, parece adotar a mesma postura. Sua maneira de narrar, com cada cena dando a impressão de começar já no meio e terminar antes do fim, reforça essa sensação de algo inconcluso, deixado aberto à interpretação.
Tudo é narrado com um certo distanciamento, quase nonchalance, como se a câmera estivesse ali por acaso, ou como se os personagens estivessem pensando em outra coisa. No entanto, nada é gratuito ou desleixado, há uma grande precisão no que é mostrado e no que é omitido, mas não se trata da precisão rígida do cinema clássico, que conduz nosso olhar de modo tirânico, mas de uma espécie de precisão suave. Analogamente, os eventos dramáticos parecem amortecidos, esvaziados de ênfase e estardalhaço.
Claro que essa abordagem sutil, esse espaço que se abre para a circulação do olhar e para a intervenção do pensamento, só é possível graças à arte de uma atriz singular, Isabelle Huppert. É interessante, aliás, cotejar sua atuação em O que está por vir e em Elle, também em cartaz. No filme de Paul Verhoeven sua personagem (uma empresária criadora de games eróticos e violentos) tem interfaces semelhantes: com o trabalho, o ex-marido, amantes, filhos, mãe idosa. Mas tudo ali desemboca em uma forma ou outra de violência. É uma Isabelle Huppert que explode, estilhaça, fere (e se fere). Em O que está por vir, ao contrário, todas as violências parecem absorvidas, mediadas, sublimadas. Há mais uma implosão do que uma explosão. Que a mesma atriz seja capaz, com a mesma competência criativa, desses movimentos opostos é uma prova de sua categoria extraordinária.