A profunda crise da sociedade contemporânea tem a ver com o questionamento da legitimidade e da legalidade das instituições. É a partir da confusão entre essas duas dimensões, descrita pelo filósofo italiano Giorgio Agamben em O mistério do mal (Boitempo/Edusc), e da potência do não, pensada por ele em Bartebly, ou da contingência (Autêntica), que pretendo pensar o entrelaçamento entre política e ativismo nas redes sociais, onde muitos de nós experimentamos o desconforto de ser interpelados por discursos de ódio. “Nós” quer dizer nós-pessoas-políticas-com-atuação-pública-em-redes-sociais, um longo sintagma para designar quem está no Facebook nessa batida “curte-compartilha-comenta”. Minha linha do tempo indica que criei meu perfil há exatos sete anos, e desde então este tem sido um espaço privilegiado – e mesmo inexorável – de atuação pública. Diante dos debates vazios de conteúdo ou argumentos, da mera disseminação de ódio e preconceito, o “preferia não” ainda é a melhor resposta.
O filósofo italiano Giorgio Agamben
Agamben escreveu O mistério do mal para tratar da renúncia do papa Bento XVI e da confusão entre crise de legalidade e crise de legitimidade da Igreja Católica, coberta de denúncias de corrupção. “Se é tão profunda e grave a crise que nossa sociedade está atravessando, é porque ela não só questiona a legalidade das instituições, mas também sua legitimidade; não só, como se repete muito frequentemente, as regras e as modalidades do exercício do poder, mas o próprio princípio que o fundamenta e o legitima”, escreve o filósofo.
Em outras palavras, instituições não podem mais estar fundadas apenas na sua legalidade. A rigor, toda instituição que pretenda se afirmar apenas sua legalidade não tem legitimidade. A legitimidade, como não é dada, é construída no chamado tecido social. A validade dos discursos – e não por acaso também a explosão dos discursos – depende tanto da legalidade quanto da legitimidade, e a crise, segundo Agamben, se dá por esta diferença aberta entre legalidade e legitimidade. O resultado é que supostamente se passa a poder afirmar ou que todo discurso tem valor – por que é tão legítimo quanto qualquer outro – ou que nenhum discurso tem valor – porque só apoia sua pretensão de legitimidade em si mesmo.
É dessa imensa confusão que brotam, por exemplo, incontáveis debates vazios de conteúdo. Ao invés de argumentos, o que se lê na grande maioria das caixas de comentários é apenas a afirmação da legitimidade do que se diz, independentemente do dito. Como não há instituição que possa arbitrar sobre a legitimidade de cada discurso, o que frequentemente acaba acontecendo é uma total ausência de querer-dizer, em nome da mera afirmação do poder-dizer, produzindo um diálogo de surdos.
Se posso me valer dos argumentos de Agamben para refletir sobre o que acontece nas redes sociais é porque, sem legitimidade, com sua legalidade sob suspeita, os conteúdos da igreja acabaram caindo num vazio de significado. A chamada “crise dos valores”, atribuída a um “relativismo pós-moderno” tem origem nesta confusão percebida por Agamben. Em outras palavras, o “relativismo pós-moderno” não me parece que seja a origem do esvaziamento dos discursos – inclusive os institucionais – mas, antes, o seu principal sintoma, resultado da crise percebida pelo pensador italiano. De certa forma, ao diagnosticar a crise da Igreja Católica que levou à renúncia de Bento XVI e à posse do papa Francisco, Agamben também nos ajuda a entender por que o sucessor tem afirmado a legitimidade de seu discurso em sua origem franciscana, como símbolo de um retorno aos fundamentos históricos e, digamos, originais, da igreja.
O mistério do mal chega às livrarias quase ao mesmo tempo em que Bartebly, ou da contingência, uma luxuosa edição da Autêntica acompanhada de tradução da novela Bartleby, o escrevente – uma história de Wall Street, de Herman Melville (anteriormente publicada também em luxuosa edição pela CosacNaify). Neste texto, Agamben apresenta sua leitura para a magistral novela pensando a diferença entre os verbos poder, querer e dever. O escrivão que a todas as demandas responde com “preferia não” é percebido pelo filósofo como símbolo da rejeição ao dever, ao imperativo categórico kantiano – aja como se tua máxima pudesse se tornar máxima universal – e identificado com a potência do não, o poder de não agir por submissão ao dever. O escrivão também é, para Agamben, a figura da contingência absoluta, daquele que pode ser ou não ser. A ideia é que o “preferia não” carrega uma potência que, para existir, precisa não se consumar em ato, precisa continuar a não ser.
Aqui, os adeptos do diagnóstico simplista de um mero “relativismo pós-moderno” ficam ainda mais expostos, porque Melville, Agamben e também Carl Schmitt nos lembram que fazer política é antes de tudo exercer o direito de escolher seu inimigo. Cair nos discursos de conteúdo vazio é se deixar escolher pelo inimigo quando, para a grande maioria deles, a única resposta potente é “preferia não”.