Lugar nenhum

Artes

06.05.13

Lina Kim: Sem título

Lina Kim: Sem título, 2003-2006 (Coleção Marcio Silveira)



A exposição Lugar nenhum, em cartaz no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro até 2 de junho, aborda a relação entre fotografia e pintura na produção contemporânea por meio de obras figurativas de oito artistas brasileiros – Ana Prata, Celina Yamauchi, Lina Kim, Luiza Baldan, Marina Rheingantz, Rodrigo Andrade, Rubens Mano e Sofia Borges. Seus trabalhos mostram lugares, cenas e imagens que, a princípio, se poderia ignorar com facilidade. A pintura Malha viária com piscina (2010), de Marina Rheingantz, ou o díptico fotográfico entre (2003), de Rubens Mano, mostram cenas que frequentemente passam desapercebidas, como as paisagens que, numa viagem de carro, são um pano de fundo sem importância.

A mostra nasceu da percepção de que um número significativo de pintores e fotógrafos brasileiros se volta para cenas extremamente triviais que, ao mesmo tempo, apresentam algum dado de estranheza. É como se esses artistas retratassem um mundo banal, mas ainda assim pouco plausível. As pinturas de Ana Prata mostram situações tão triviais quanto um tanto de lixo espalhado na rua. Mas a contorcionista sobre o fundo verde-água que vemos em Grande circo (2011), da mesma artista, provavelmente retirada da internet ou da tevê, tem algo de irreal. O mesmo pode ser dito da estrutura de tubo pvc branco que aparece em Esqueleto (2012), ou do olhar incisivo do animal empalhado em Coelho (2012), ambos fotografados por Sofia Borges num museu de história natural. A cena que aparece na pintura Rua deserta (2010), de Rodrigo Andrade, o chão com terra na foto Sem título (2012), de Celina Yamauchi, e o corredor vazio da série Lagos (2004-2007), de Luiza Baldan, compartilham da mesma suposta banalidade. As únicas imagens que poderiam ter alguma conotação histórica na exposição são as da série Rooms (2003-2006), de Lina Kim, mostrando alojamentos do exército soviético, hoje abandonados, na antiga Alemanha Oriental. No entanto, interessam pelo vazio e por não identificarem de imediato o espaço que representam.

Os  três pintores presentes na mostra – Ana Prata, Marina Rheingantz e Rodrigo Andrade – não partem da observação da realidade imediata, mas de fotografias retiradas de livros, revistas, jornais, arquivos pessoais ou da internet. Por outro lado, os artistas que participam da exposição com fotografias – Sofia Borges, Luiza Baldan, Rubens Mano, Celina Yamauchi e Lina Kim – são informados pela pintura, mas não se pautam apenas nela, como aconteceu em outros momentos da história. (Penso sobretudo no início da fotografia, na primeira metade do século XIX, quando a nova técnica se pautava nos temas e enquadramentos da tradição pictórica. Desde então, se observa uma série de influências mútuas entre as duas formas de representação. Ao longo do século XX, as trocas se tornaram cada vez mais complexas, não sendo possível, muitas vezes, determinar uma origem única para soluções formais engendradas por artistas que trabalham com essas técnicas).

Estes artistas são formados também por uma história da arte recente, que inclui a ironia e o ceticismo do Pop e da arte conceitual. A maior parte dos trabalhos é apresentado em formato de tableaux em grandes dimensões, a exemplo da produção internacional surgida em meados dos anos 1980, que tem Jeff Wall e Andreas Gursky como os princiais expoentes. Esses artistas estão à vontade para manipular imagens. Yamauchi, Kim e Borges modificam digitalmente suas fotos, enquanto Rubens Mano interfere diretamente nos lugares que registra. Apenas Baldan faz fotografia analógica de maneira convencional, sem alterações posteriores, retringindo suas escolhas às lentes, ao tipo de filme, câmera e ponto de vista.

Para um moderno como Cartier-Bresson, o cotidiano era fonte de coincidências significativas e formais (o homem pulando a poça d’água atrás da estação Saint-Lazare cria uma espécie de coreografia com a bailarina do cartaz). O instante decisivo é sobretudo autoral, está comprometido com um humanismo profundo, com o apego a um mundo que, apesar de toda violência, é vibrante e belo. Com exceção de Celina Yamauchi, os fotógrafos reunidos em Lugar nenhum parecem buscar uma retórica da neutralidade, o que não se confunde com veracidade, já que a maioria deles interfere nos registros. A exemplo do que acontece na cena internacional desde meados dos anos 1970, seu olhar sobre os lugares é carregado de uma aparente frieza, construída a partir de enquadramentos frontais e distantes. São herdeiros da postura discreta, avessa a subjetivismos, comum aos artistas ditos “conceituais”.

Marina Rheingantz: Malha viária com piscina

Marina Rheingantz: “Malha viária com piscina”, 2010 (Coleção particular)



Essa mesma discrição caracteriza a pintura de Marina Rheingantz. Embora a fotografia seja para ela uma potente fonte de ideias, as imagens detonam um processo criativo que visa desafios próprios da pintura. Como acontece com Ana Prata e Rodrigo Andrade, a fotografia é ponto de partida quando a artista nela vislumbra elementos (uma estrutura formal, um assunto, uma cor ou uma atmosfera) que nutrem seu próprio universo poético. Bebem da fotografia, mas não querem que sua pintura se pareça com ela. No caso de Rheingantz, grandes áreas vazias funcionam como espaços para a realização de uma pintura liquefeita e plana, na qual a cor é construída lentamente por camadas. Os vazios criam uma atmosfera de silêncio e de tempo alargado. Isso acontece não apenas pelo fato de a artista retratatar amplos espaços vazios, mas pelo tratamento quase abstrato de algumas áreas, onde a cor nunca é apenas aquela que vemos de imediato. Sob a superfície azul de Reflexo, 1012, pulsam amarelos e violetas. Uma tensão sutil entre as cores acaba por protagonizar a tela. Especialmente nas obras de grande formato, Rheingantz cria uma espécie de nostalgia do tempo que nos falta. A força de sua obra está na combinação desse lugar de alento (que é a própria obra) com o sentido de irrealidade atribuído ao que é doméstico e banal. Ao mesmo tempo em que seduz (principalmente pela sobriedade e complexidade das cores), o mundo retratado por Rheingantz é incerto e incômodo; comum, porém intangível.

Sem prescindir de austeridade, a figuração de origem fotográfica agrega afetos e memórias às preocupações estéticas da artista. Em trabalhos como Reflexo, Neuköln (2011), Pelada Caipira (2011) e 5:30 (2010), lugares e objetos parecem à espera de alguém. Em Neuköln, 2011, a artista parte de uma base vermelha que energiza as camadas de cores mais rebaixadas, fazendo com que, apesar do pequeno formato, o quadro tenha uma potência expansiva. A intensidade do vermelho e o padrão florido do fundo lembram Matisse. Mas, enquanto em O ateliê vermelho (1911) o ambiente é impregnado dessa cor, fazendo com que os objetos pareçam flutuar, no quadro da artista brasileira, ao contrário, a cor está em alguns poucos objetos, descolando-os do entorno. Em Matisse, que também trabalhava com camadas de cor, os amarelos e os azuis do fundo vem à tona nas linhas que estruturam o espaço e contornam os objetos. A pintura de Rheigantz é menos gráfica, sendo que nela o espaço é construído pela justaposição de áreas de cor e não por meio da linha. Os pontos amarelos em contraste com os elementos azuis têm o mérito de apaziguar a estridência do vermelho, integrando-o à tela.  Podemos dizer que a relação do vermelho com as outras cores é o assunto dessa obra.

A poética de Rheigantz encontra afinidades sobretudo na produção de Rubens Mano e Luiza Baldan, que fotografam também lugares anônimos e “desinteressantes”. O trabalho do primeiro reivindica uma ética do olhar. Suas fotografias, vídeos, instalações e intervenções em espaços públicos despertam para a consciência de que todo ponto de vista tem implicações políticas. Arquiteto de formação, Rubens Mano fotografa ou interfere nos espaços com o objetivo de transformar a maneira como eles são percebidos. Foi assim quando iluminou o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, com imensos canhões de luz (detector de ausências, 1994), quando criou um acesso alternativo à 25a Bienal de São Paulo (vazadores, 2002) ou quando construiu uma ponte pênsil interrompida (criando também uma espécie de abismo) no vão livre do espaço octógono na Pinacoteca do Estado de São Paulo (contemplação suspensa, 2008). Seu trabalho é fruto de um pensamento arquitetônico e fotográfico que se volta para a configuração das cidades e das instituições, sobretudo as artísticas, lugares de formação do olhar.

Rubens Mano registra situações tal como as encontra ou modifica fisicamente os lugares antes de fotografá-los. Suas imagens mostram construções vazias quase sempre em ruínas. Nessas imagens de abandono e decadência, o silêncio tem um tom agressivo e de denúncia. A contundência nasce de um extremo rigor formal em contraste com a precariedade do que está diante da câmera. No díptico entre (2003), ele pintou de branco o interior de uma casa abandonada à beira da via Dutra, com exceção da parede com a janela, que foi colorida de verde e, depois, de rosa. Em seguida, fotografou a construção sob sol a pino, de maneira que a nova cor do interior, vista através da janela quadrada, se torna extremamente luminosa e difusa, contrastando com a fachada à sombra e com o aspecto ruidoso do entorno. De aparência artificial, a intervenção parece fruto de uma manipulação digital, embora o artista tenha modificado a própria realidade. De todo modo, é evidente que as cores não pertencem àquele lugar. A casa parece emanar uma luz contida, que nada ilumina, daí sua estranheza e interesse. A luz vem de onde menos se espera, a exemplo do trabalho bueiro, 1999, quando Mano instalou lâmpadas em dois bueiros numa rua de São Paulo.

No trabalho conflito em risco (2013), o artista justapõe dois pontos de vista descontínuos sobre um mesmo canteiro do parque Goeldi, em Belém. Com um simples deslocamento de câmera, a obra contraria a espectativa de complementariedade criada pelo formato do díptico. Com dois pontos de fuga, a cena parece sutilmente esgarçada, fazendo com que, a despeito das semelhanças e do desenho formado pelo paralelepípedo, cada uma das fotos afirme sua individualidade. As fotografias apresentam informações a princípio complementares sobre o mesmo lugar, mas há algo entre elas que não nos é dado a ver, criando uma fissura perturbadora. Parece-me que trabalhos como fundo falso (2002) e construção da paisagem (2010) surgem de um universo semelhante de questionamentos. fundo falso – que pode ser interpretada como uma metáfora da própria fotografia – é o registro de uma situação encontrada pelo artista. construção da paisagem é o desdobramento de uma ação realizada no Museu de Belas Artes de Córdoba, Espanha, em 2009, quando Rubens Mano instalou nove câmeras de vídeo num pátio do museu, que permanecia inacessível ao público. A obra transmitia ao vivo, em duas salas expositivas do museu, imagens daquele espaço até então esquecido. A partir dessa situação, Mano produziu a série de fotografias intitulada a construção da paisagem, na qual incorpora a câmera de vídeo às cenas, transformando o próprio mecanismo de registro em imagem. Interessa ao artista revelar o que normalmente permanece oculto, o artifício e o bastidor.

Rubens Mano: fundo falso

Rubens Mano: “fundo falso”, 2002 (Coleção do artista, cortesia Galeria Millan)



As fotografias de Luiza Baldan feitas em diferentes lugares do mundo parecem descrever um único lugar que, por sua vez, poderia estar em qualquer parte. Em sua obra, até mesmo uma cidade emblemática como o Rio de Janeiro se confunde com outras. A artista muitas vezes registra locais de passagem e espera: esteiras para malas num aeroporto, um corredor, o quarto de um hotel, uma estrada que dá para lugar nenhum. Seu trabalho comenta a homogeneidade do mundo em que vivemos e, de certa forma, critica o desejo (ou o comodismo) que leva ao padrão. A aparente frieza dos registros acaba por conduzir de forma muito direta às idéias que interessam à artista: na série Insulares (2010), resultado do período de residência da artista num condomínio de pretensões ecológicas, em obras no bairro carioca da Barra da Tijuca, ela aproxima construção e abandono; modernidade e precariedade. O que parece um subsolo em obras, talvez uma garagem, adquire uma atmosfera lúgubre, semelhante ao da pintura Pântano (2011), de Marina Rheigantz. Outro ponto de encontro entre a obra das duas artistas é o interesse por ambientes domésticos.

Na montagem da exposição, procuramos favorecer as correspondências e os contrastes entre fotografias e pinturas dispondo-as lado a lado. Apenas duas artistas, Celina Yamauchi e Sofia Borges, pelas especificidades de seus trabalhos, ganharam espaços individuais. No caso da primeira, as fotos da série Sans (2012), de caráter intimista e formato relativamente pequeno (em média 42 x 42 cm), foram agrupadas num espaço que favorece uma apreciação aproximada. A poética dessa artista se concentra na investigação de processos fotográficos analógicos e, mais recentemente, digitais. Yamauchi estuda detalhadamente as possibilidades estéticas e formais das tecnologias e dos materiais com que trabalha, para então definir como será seu modo de intervenção. Aborda a fotografia como um processo de gravura, conferindo atenção especial à qualidade da impressão final. As fotos da série Sans (2012) são originalmente coloridas, captadas com uma câmera digital. Em seguida, a artista inicia um cuidadoso processo de supressão das cores, até chegar a uma gama sutil de cinzas coloridos que são definidos no computador e na impressão em jato de tinta. Celina Yamauchi constrói suas cores como um pintor que rejeita a tinta industrializada do tubo. A cor se torna a memória vaga do que esteve diante da câmera, enquanto a luz surge pontualmente, como numa maneira negra etérea e de pouca espessura. A despeito do tom predominantemente escuro, as estampas parecem preservar a transparência no negativo. Os resultados são silenciosos e gráficos, sutilmente abstratos e, ainda assim, impregnados do cotidiano que os origina.

A essência da obra de Sofia Borges é definida no processo de edição. A artista reúne fotografias apropriadas de diferentes fontes (livros, catálogos e de seu próprio arquivo pessoal) a imagens feitas por ela mesma em zoológicos e museus de história natural, por exemplo. É curioso seu interesse por sistemas que procuram organizar o conhecimento sobre a natureza, sendo que o resultado final de seu trabalho é embaralhar os significados das imagens, esvaziando-as de sentido ou explicitando o quanto seu significado é manipulável. Nos últimos quatro anos, aproximadamente, seu trabalho tem sido reunir num mesmo contexto (geralmente salas de exposição em galerias e instituições de arte) um conjunto de fotos que insistem em se afastar uma das outras. A própria artista costuma dizer que seu intuito é criar o contrário do ensaio fotográfico no qual uma imagem complementa outra. Busca o estranhamento entre as fotos, uma antinarrativa. Em Lugar nenhum, Borges mostra numa mesma sala fotografias de um leão marinho empalhado (Leão marinho, 2012), de uma estrutura de cano pvc utilizada como suporte para objetos num museu de história natural (Esqueleto, 2012), o close de um coelho empalhado (Coelho, 2012), o retrato de um homem (Xavier, 2009) e detalhes de pequenos ossos (Sem título, 2012). O acabamento final das imagens – quase todas têm grandes dimensões, alta definição e contraste acentuado – colabora para confundir suas origens. Não é possível saber se as fotos foram captadas pela artista ou se são resultado de apropriações. Embaralhar as noções de original e cópia é uma das virtudes de sua obra. No computador, a artista manipula contrastes e elimina detalhes, mas essas modificações não são o cerne do trabalho, são apenas alguns dos muitos dados determinados pela artista no processo de edição. O resultado ganha alguma coesão formal e impressiona pela acuidade e pelo apuro no acabamento. No entanto, o sentido de unidade é tensionado não apenas pela pouca afinidade entre os assuntos, mas também pelo contraste entre o que é dado a ver de modo explícito (Coelho e Esqueleto) e o que permanece à sombra (Leão marinho e Xavier).

Sofia Borges: Coelho

Sofia Borges: “Coelho”, 2012 (Coleção da artista, cortesia Galeria Millan)



Na série Rooms, de Lina Kim, o rigor formal organiza o caos criado pelo abandono de maneira semelhante ao que acontece na obra de Rubens Mano. Mas se Mano interfere concretamente nos espaços, Kim modifica a aparência das cenas por meio de recursos digitais, como Yamauchi. Cada uma das fotos de Rooms tem origem na fusão de três negativos realizados com o mesmo enquadramento, mas com calibragens fotométricas distintas, de modo a registrar de forma adequada tanto o que está à sombra quanto as áreas mais intensas de luz. Kim não modifica o assunto, mas as possibilidades de percebê-lo por meio da fotografia. Como resultado, temos um equilíbrio entre a luminosidade do interior e do exterior, o que permite a visualização simultânea de detalhes nos dois ambientes. Nesses lugares marcados pelo abandono, a opção pelo enquadramento frontal potencializa o impacto formal da geometria. No interior claro, as paisagens esbranquiçadas que se vêem através de janelas e portas parecem pinturas e, ao mesmo tempo, lembram também o visor de uma câmera obscura de médio formato, como a que foi utilizada pela artista. Essas características formais reforçam a ambiguidade das imagens: são documentos, mas não identificam o quê, tampouco quando. Os quartos de Lina Kim são lugares quaisquer num tempo indefinido. A artista rejeita uma retórica explícita sobre o processo de unificação alemão. Ao mostrar paredes descascadas e paisagens desoladas, suas imagens formalizam a deriva, o vazio e o esquecimento que também fazem parte da história.

Vistas de longe, as pinturas de Rodrigo Andrade são confundidas com fotografias, mas, de perto, são as que mais se diferenciam dessa técnica. Na série de obras figurativas que desenvolve desde 2010, o artista trabalha a partir de fotos feitas por ele mesmo ou de imagens retiradas de diferentes mídias. As paisagens são vazias e, a princípio, noturnas, como as que Andrade mostrou na 29a Bienal de São Paulo. Recentemente, ele passou a pintar cenas diurnas, frames de filmes e fotos jornalísticas, como é o caso da Paisagem do tsunami 2 (2013) que integra a exposição. Os trabalhos realizados nos últimos três anos derivam da pesquisa anterior iniciada em 1999, quando Andrade tornou sua pintura literalmente tridimensional ao construir formas geométricas com grossas camadas de tinta sobre a tela. Posteriormente, ele passou a aplicar seus blocos de cor em ambientes fora do circuito artístico, como o bar Lanches Alvorada, no centro de São Paulo. Vistas de longe, as pinturas de imediato expõem sua origem fotográfica, de perto, ao contrário, elas se impõem predominantemente como matéria. A espessura da tinta, sua dimensão tátil e o cheiro que exala fazem com que a apreciação das pinturas se torne uma experiência corporal.

Para construir essas obras, primeiro o artista projeta imagens fotográficas sobre a tela, como um auxiliar para o desenho. Em seguida, trabalha a superfície da obra com uma grande variedade de soluções: pinceladas de diferentes tamanhos, tons sobrepostos e efeitos de luz e sombra. Com a ajuda de máscaras, Andrade separa as áreas que devem permanecer como pintura convencional e aquelas que serão cobertas pelas grossas camadas de tinta. O resultado é pesado. A ausência de luz, no caso das cenas noturnas, se torna matéria. A escuridão que daria profundidade à imagem salta aos olhos. A força do trabalho reside nesse jogo estabelecido entre o que é visto e o que é coberto, entre uma pintura construída com detalhamento e a matéria que bloqueia e se impõe.

No caso de Andrade, um artista que vem protagonizando a cena da pintura brasileira desde os anos 1980, como um dos criadores do grupo Casa 7, o uso da fotografia está vinculado a seu interesse em se afastar de uma arte preciosista, em inserir a pintura no cotidiano. A relação atual de sua obra com a profusão de imagens que compõe a experiência contemporânea é um desdobramento coerente de seu interesse por quadrinhos, por materiais pouco nobres, como o papel kraft, e pela cultura pop.

Rodrigo Andrade: Rua deserta

Rodrigo Andrade: “Rua deserta”, 2010 (Coleção Raquel e Leopold Nosek)


Ana Prata tem em comum com Rodrigo Andrade o interesse indiscriminado por imagens de diferentes naturezas retiradas da internet, das mídias impressas, da televisão ou do cinema. Entre os artistas da exposição, Prata é a que mais está imersa nesse mundo de imagens, como se ele fosse tão concreto quanto a realidade. Para ela, tudo faz parte de um amplo universo de referências um tanto caótico e disperso, estreitamente relacionado com a experiência de mundo hoje. Ela trabalha com uma rapidez e diversidade de interesses que lembra o processo de criação de um fotógrafo, que tem a facilidade de, a qualquer momento, registrar tudo ao seu alcance. Esse processo está presente na fatura das próprias pinturas, que muitas vezes se resolve com pinceladas rápidas e áreas de aparência inacabada. Mas, no caso de Ana Prata, a ansiedade não significa um consumo indiscriminado de imagens. No mundo retratado pela artista, os mais diversos assuntos aparecem simultaneamente, como nas janelas de navegação da internet, para desafiar hierarquias e o senso comum do que importa ou não.

Cada um ao seu modo, os artistas reunidos em Lugar nenhum trabalham a partir do cotidiano, mas sem buscar lirismo ou redenção. Partindo dos universos da pintura e da fotografia, questionam os modos de representação e respondem à experiência de conviver com um montante avassalador de imagens e informações. O interesse por lugares a princípio anódinos é parte da estratégia de agir pelas bordas, de maneira silenciosa, se afastando do que é obviamente midiático e espetacular.

* Heloisa Espada é coordenadora de artes do IMS.

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