Em “Nosso homem em Paris”, oitavo episódio de “Vinicius – poesia, música e paixão” na Rádio Batuta, Vinicius de Moraes deixa Los Angeles em meio à morte do pai e ao fim da relação com Tati e se muda para Paris, casado com Lila Bôscoli. Na capital francesa começou a nascer “Orfeu da Conceição”.
A expulsão de Vinicius de Moraes do Itamaraty é um episódio que sempre se prestou a especulações e lendas. Pelo menos duas versões podem ser contadas sobre o caso. Na mais folclórica e difundida, o poeta teria sido exonerado através de um memorando em que o presidente Arthur da Costa e Silva o chamava de vagabundo. No livro Chega de saudade, Ruy Castro conta que em fins de 1968 Vinicius recebeu o comunicado mergulhado em sua banheira e caiu em prantos, pois adorava o Itamaraty.
Uma segunda versão, baseada em documentos da ditadura, assegura que ele foi vítima da Comissão de Investigação Sumária, que em 1969 expurgou diplomatas de carreira sob acusação de serem boêmios ou homossexuais. Foi publicada em reportagem do jornal O Globo e também no livro Vinicius de Moraes, produzido pelo Instituto Cultural Cravo Albin. Nesta versão, o algoz do poeta seria o embaixador Antonio Cândido da Câmara Canto, que presidiu a tal comissão inquisidora, e o motivo alegado foi alcoolismo.
Para quem se interessa pelo tema, nos últimos anos essas duas versões ganharam credibilidade diferente. A primeira ficou sendo a mais anedótica, e a segunda a mais séria e correta. Recentemente, tive oportunidade de vasculhar os maços pessoais de Vinicius no Itamaraty, os documentos do SNI no Arquivo Nacional, o fundo das polícias políticas no Arquivo do Estado do Rio e os acervos privados de diplomatas no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas.
Sobre o episódio específico não restou uma documentação conclusiva. Mas as pistas deixadas levam a acreditar mais na culpa do marechal Costa e Silva do que na do embaixador Câmara Canto. Ao que tudo indica, a exoneração foi ordenada em instâncias superiores e não pela comissão do Itamaraty, e o que mais incomodou os militares foi a suposta falta de assiduidade ao trabalho, e não a postura política ou o comportamento boêmio do poeta.
Guardiões do Itamaraty
As restrições quanto ao comportamento boêmio e namorador de Vinicius começaram a surgir dentro do próprio Itamaraty, antes mesmo da ditadura militar. Em 1963, ainda no governo João Goulart, um diplomata de carreira enviou carta ao ministro das Relações Exteriores, João Augusto Araújo Castro, em que chamava a atenção para o que considerava um fato grave.
Segundo o delator, que assina como Carlos Pourlon, o embaixador Paulo Carneiro foi abordado no aeroporto do Galeão pelos pais de uma jovem de 18 anos que o poeta havia levado para Paris. Estavam preocupados com o destino da moça. Era Nelita de Abreu, quinta esposa de Vinicius. “Os velhos, chorando, imploraram ao embaixador Carneiro que ajudasse sua filha, agora vivendo em companhia de tal indivíduo”, escreveu. Continuava a carta dizendo que não era a primeira jovem a cair em suas mãos, já que, pouco tempo antes, o poeta “traiu miseravelmente um seu amigo Jorge Vargas de Andrade, casado com uma senhora da família Proença”. Era a quarta esposa de Vinicius, Lúcia Proença, de fato subtraída ao amigo.
O missivista questionava sua designação para trabalhar na Unesco: “Não compreendo como um funcionário possuidor de tão sórdido caráter consegue designação para a Unesco – Paris”. E continuava com uma acusação aparentemente contraditória: “Dizem agora que o tal ?gênio’ bossa nova virou homossexual…”. O autor lamentava a má influência desse tipo de comportamento sobre os jovens diplomatas e sugeria uma limpeza no Itamaraty, com expurgo dos pederastas e dos amigados, que não tinham casamento formal: “uns amigados com pessoas discretas, outros, mal amigados, afrontando despudoradamente a opinião pública”.
Não houve consequências maiores. A carta foi parar na mesa do chefe do departamento de administração do ministério, Azeredo da Silveira, que era amigo de Vinícius. O filho do ministro Araújo Castro, Luiz Augusto, diz que seu pai também era amigo e admirador do poeta e que esta carta “mesquinha e odiosa” pode nem ter chegado às mãos dele. Para o embaixador Marcos Azambuja, estudioso da história do Itamaraty, o autor da carta deve ser algum funcionário do ministério, já que está cheia de jargões da diplomacia e é formatada como um memorando interno. Mas avalia que o autor usou um pseudônimo, já que não havia funcionários com este nome na época, e pelo uso da ortografia antiga e a incidência de erros de português, provavelmente seria alguém mais velho e pertencente aos quadros subalternos do Itamaraty.
O fato é que este tipo de manifestação ganharia força nos anos seguintes. Em janeiro de 1966, já durante a ditadura militar, o embaixador Manoel Pio Corrêa assumiu o cargo de secretário geral do ministério, adotando uma postura pouco tolerante com comportamentos que considerava impróprios. Em seu livro de memórias, O mundo em que vivi, ele diz que, na época, chamou seu chefe de gabinete para lhe dar a seguinte orientação: “Não gosto de diplomatas pederastas; não gosto de diplomatas vagabundos; não gosto de diplomatas bêbados. Quem não se enquadrar em qualquer dessas três categorias nada tem a recear de mim, mesmo por suas opiniões políticas”. No mesmo livro, o embaixador, que não era militar, assume a culpa por ter colocado Vinicius em licença não remunerada, ainda em 1966, como se verá adiante.
Dois anos depois, com o governo Costa e Silva, o decreto do AI-5 e o consequente acirramento do regime, foi criada a Comissão de Investigação Sumária, medida saneadora proposta pelos militares, que instituíram comissões semelhantes em outros ministérios. No Itamaraty, o objetivo era expurgar funcionários com conduta incompatível com o que se entendiam ser as responsabilidades e o decoro da diplomacia brasileira. A coordenação dos trabalhos coube a Câmara Canto.
O embaixador se presta facilmente ao papel de vilão, por ter sido um diplomata linha-dura e posteriormente, no Chile, muito próximo do ditador Augusto Pinochet. Mas o relatório final que entregou no dia 7 de março de 1969, com rubrica do ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, não reflete plenamente esse sentimento que já borbulhava na casa e que foi reforçado pelo governo militar. Pode-se dizer que ele foi brando em relação ao que os militares esperavam. Isso fica evidente na maneira com que Vinicius foi tratado: “Considerando que a conduta do primeiro secretário Vinicius de Moraes é incompatível com as exigências e o decoro da carreira diplomática, mas em atenção a seus méritos de homem de letras e artista consagrado, cujo valor não se desconhece, a Comissão propõe o seu aproveitamento no Ministério da Educação e Cultura”. De acordo com a comissão, ele deveria ser transferido, e não exonerado.
Tão esclarecedor quanto esse relatório final é um outro, produzido 20 dias mais tarde pelo departamento de inteligência da Aeronáutica, também acessível no Arquivo Nacional. O autor não se identifica, mas pelas referências trata-se de um coronel da Aeronáutica infiltrado em alguma embaixada brasileira.
Segundo ele, o decreto que ordenava a criação da Comissão de Investigação Sumária foi, de início, motivo de muita apreensão por boa parte dos diplomatas, que consideravam o AI-5 “um golpe dos gorilas”. Mas o militar diz que a tranquilidade voltou a reinar no Itamaraty quando se soube que a comissão seria criada no âmbito do próprio ministério e presidida por um embaixador. Nesse texto, fica nítida a divisão entre os militares e o pessoal do Itamaraty. Por mais que vigorasse dentro da casa uma rejeição aos boêmios e homossexuais desde o governo João Goulart, o sentimento de grupo falou mais alto na ocasião de caça às bruxas promovida pelos militares. No relatório, o coronel afirma textualmente que o código de honra vigente entre os diplomatas ajudou a “neutralizar a comissão”, diminuindo o tamanho do expurgo. Diz que o ministro Magalhães Pinto teria reduzido o número de processos de 34 para 17 – na verdade, o relatório final da comissão pede exoneração de apenas 15 diplomatas (e 33 funcionários subalternos) e sugere a transferência de Vinicius para o MEC.
No final do relato, o militar anexou uma lista mais ampla com 86 nomes que deveriam ser investigados, incluindo o do poeta João Cabral de Melo Neto, visto como comunista. E acrescentou: “De par com a necessidade de eliminar do serviço público os elementos improbos ou de conduta irregular, empenha-se por igual o Governo da Revolução em aliviá-lo dos ociosos (…) como era o caso do primeiro secretário Gilberto Chateaubriand, há poucos dias demitido a pedido, ou é ainda o caso do não menos notório primeiro secretário Vinicius de Moraes”.
Não há documentação que mostre o que aconteceu depois disso: o coronel parece ter sido ouvido apenas parcialmente. No dia 30 de abril de 1969, o Diário Oficial publicou a lista dos diplomatas a serem afastados. Era muito parecida com a relação final de Câmara Canto. Três diplomatas “acusados” de homossexualismo e “insanidade mental” foram absolvidos. E Vinicius foi o único caso de funcionário poupado na lista do embaixador Canto, mas exonerado no decreto oficial.
Na biografia O poeta da paixão, José Castello também menciona a transferência de Vinicius, mas diz que a incompatibilidade de cargos e funções entre o Ministério das Relações Exteriores e o outro seria o motivo alegado para que ela não fosse aceita. Ocorre que, em 1957, o ministro da Educação e Cultura, Clóvis Salgado, já havia pedido a transferência do poeta, para trabalhar em uma comissão de cinema. O pedido foi negado pelo embaixador José Carlos de Macedo Soares sob a alegação de que Vinicius estava lotado em Paris, e recebia salário pela Delegacia do Tesouro Brasileiro no Exterior. Na mesma resposta, diz que a transferência poderia ser feita quando o poeta fosse removido para a Secretaria de Estado, local onde ele servia no momento da exoneração.
Altas esferas do poder
Notícia do Correio da Manhã em março de 1969 informava que os nomes apontados na Comissão de Investigação Sumária do Itamaraty seriam submetidos ao Conselho de Segurança Nacional. Este conselho militar daria a palavra final, o que poderia justificar a mudança de punição em relação a Vinicius. Mas o caso dele não aparece na ata da reunião de 29 de abril, que deu origem às cassações do dia 30, e onde não consta nenhum diplomata. Só que no princípio da sessão, o presidente Costa e Silva informou que fez uma triagem nos nomes que seriam submetidos ao conselho naquele dia. A situação de Vinicius pode ter sido analisada pelo próprio presidente ou pelo seu gabinete. “A história que eu sempre ouvi falar em casa é que a ordem partiu realmente de Costa e Silva”, diz a filha do poeta, Georgiana de Moraes.
Em sintonia com a tese de que o pedido de exoneração veio do andar de cima, o general João Baptista Figueiredo, em entrevista ao jornalista Orlando Brito, publicada na revista Veja, afirmou sobre Vinicius: “Ele até diz que muita gente do Itamaraty foi cassada ou por corrupção ou por pederastia. É verdade. Mas no caso dele foi por vagabundagem mesmo. Eu era o chefe da Agência Central do SNI e recebíamos constantemente informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu, ganhando 6 mil dólares por mês, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com copo de uísque do lado. Nem pestanejamos. Mandamos brasa”.
A memória do general não estava boa na ocasião da entrevista. Vinicius trabalhou em Montevidéu entre agosto de 1957 e março de 1960, período em que Figueiredo era chefe do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas em Brasília. O general foi chefe da Agência Central do SNI entre 1974 e 1978, bem depois da exoneração do poeta. Na época do episódio, ele não tinha nem assumido o Gabinete Militar da Presidência da República. Não poderia, portanto, estar envolvido no caso.
Mas Figueiredo estava bem informado quanto às acusações que pesavam sobre Vinicius no meio militar. De fato, ele ficou afastado por três meses do consulado de Montevidéu. Mas essa ausência é justificada em sua ficha pessoal pelo então ministro Horário Lafer em razão de atividades culturais que estava desenvolvendo no Rio de Janeiro. A segunda acusação, de não sair dos botequins do Rio, tem a ver com outro caso já contado pelo embaixador Manoel Pio Corrêa.
No livro O mundo em que vivi, Corrêa diz que, quando assumiu a Secretaria Geral, em 1966, notou que Vinicius praticamente não aparecia no trabalho. Mas que se apresentava todas as noites na boite Zum-zum, tomando vários copos de uísque. Decidiu convocar o poeta, num horário propositalmente cedo, em que ele não costumava estar acordado.
Escreve o embaixador: “Apresentou-se pontualíssimamente, corretíssimamente vestido de traje escuro e gravata discreta – soube depois que desde mais de um ano ele não havia usado paletó e gravata – com a face escanhoada na qual um corte testemunhava a pressa com que se havia barbeado”.
Corrêa diz que colocou o poeta em uma poltrona confortável, explicou que era seu fã, mas que o regulamento da casa impedia ao funcionário ter outra atividade remunerada. Com isto, ele deveria escolher o Itamaraty ou uma licença não remunerada para tratar de assuntos particulares. Vinicius teria escolhido a segunda opção.
Um fato desses deveria estar registrado em sua ficha pessoal no Itamaraty. Não está. Mas, como a documentação referente ao período militar praticamente desapareceu, esse atestado pode ter sido também extraviado da pasta. Pio Corrêa, ainda vivo, mas muito adoentado, não pôde dar entrevista para confirmar a história.
Na biografia O poeta da paixão, José Castello diz que, nessa época, Vinicius se colocou voluntariamente à disposição da Fundação Ouro Preto, ligada ao governo de Minas. Mas, acabado o prazo da licença não remunerada, bateu várias vezes à porta de Pio Corrêa para voltar às atividades, sem conseguir qualquer resposta do embaixador. Segundo a irmã do poeta, Laetitia, ele não tinha mesa nem cadeira, e se recusava a ficar vagando pelos corredores. Justamente neste período veio o AI-5 e a Comissão de Investigação Sumária.
A imagem de vagabundo que Vinicius mantinha entre os militares estava associada a esses dois episódios. O primeiro, dos três meses de ausência em Montevidéu, justificado em sua ficha. O segundo forçado pela intransigência do secretário geral. Mas foi essa imagem, provavelmente, que o levou à exoneração, ordenada em alguma instância superior do governo, talvez pelo próprio presidente da República. Fosse pela comissão que expurgou homossexuais e alcoólatras do Itamaraty, ele teria chegado até a aposentadoria como funcionário do Ministério da Cultura.
* Marcelo Bortoloti, jornalista, é mestre em Artes e doutorando em Literatura pela UFRJ.