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Chico,
Eu já ouvi falar muito desse filme sobre o Bill Cunningham. Essa cena do discurso deve ser de foder. O filme estava passando em NY no ano passado. Passei pela porta, vi o cartaz, não entrei. NY é dessas mulheres exigentes que fazem você sentir o tempo todo que está perdendo alguma coisa. E, fora de NY, que está perdendo NY inteira, o que é sempre uma merda.
Você tem razão, Chico. O problema não é eu sair demais – é o contrário: eu sempre volto. Eu tenho que parar de voltar.
Semana passada estive em Bogotá, aquela cidade bonita e estranha a 2.600 metros de altura com sua população andina, fria e educada que pode converter-se a qualquer momento num agrupamento de caribenhos alucinados, a depender do horário e estado etílico. Fui para a Feira do Livro, mas, como sempre, o melhor episódio não se passa num auditório cheio de leitores que nunca leram o seu livro. Passei uma noite conversando e bebendo com o Sergio Álvarez, escritor bogotano dos taxistas, sicários, narcotraficantes, paramilitares e putas da cidade, traduzido na Europa inteira, mas, lamentavelmente, não para o português – dele, comece lendo o espetacular La lectora que tem um dos inícios mais ganchudos que já li num romance.
Nós peregrinamos por uma zona de fronteira dentro da cidade, a Avenida Primero de Mayo, uma espécie de Lapa anabolizada e quinhentas vezes maior com dezenas de casas de cumbia, salsa, reggaeton, rock e música eletrônica numa tranversal chamada La Cuadrapicha. Há também quilômetros de baixa gastronomia, bares, puteiros e outra avenida exclusiva para motéis – o ecossistema está completo, cobrindo o conjunto das necessidades humanas. É o lugar onde a Bogotá que existe – as ruas numeradas em direção ao norte – se encontra com a Bogotá submersa, fora dos guias turísticos e destinos da maioria dos que vivem do outro lado. É um ponto de peregrinação noturna, há muita gente de lugares diferentes e você sente uma tensão de cidade portuária cortando o ar – até porque o tempo todo seus amigos recomendam que você cuide da sua bebida.
O controle da área – como o de todas as zonas rojas da cidade e do tráfico de drogas – está nas mãos pacificadoras dos paramilitares. É curioso perceber que o mesmo acordo que parece em curso no Rio de Janeiro – a neutralização dos narcotraficantes através de acordos com grupos milicianos – aconteceu na Colômbia há cerca de 10 anos: eles trocaram a batalha sangrenta entre guerrilheiros, narcotraficantes e o exército pelo reino absoluto dos para.
Agora, o que eu queria mesmo te contar, e que tem a ver mais com o Bill Cunningham que com os paramilitares, é que no Museo de Arte del Banco de La República vi uma obra do portorriquenho Tony Cruz que me deixou embasbacado.
Vendo de longe, são apenas longos riscos horizontais e verticais na parede, uns sobre os outros, feitos com um lápis e a ajuda de uma régua. Depois você percebe algumas marcas com números – aquelas linhas representam uma distância. A distância entre a casa do artista na sua cidade natal, San Juan, até Bogotá, lugar do desenho: 1.763 quilômetros.
A obra é a representação da distância entre o artista e a obra, Chico. Do artista até a obra. Nada mais que isso – e, aí é onde complica, nada menos.
Abraço, saudades,
JP
Ps.: Me ajuda a avisar pros amigos em SP que lanço um livro de crônicas lá no dia 8, terça próxima? Às 20h00 vai rolar um papo seguido de autógrafos no SESC Vila Mariana (https://www.facebook.com/events/270823149674681/) e a partir das 22h00, uma festinha para os amigos no Espaço Walden, na Praça da República (http://www.facebook.com/events/363682973674669/). Vou assinar livros nos dois lugares. A capa do livro é essa aqui:
* Na imagem que ilustra esse post: a obra de Tony Cruz, retratada por J. P. Cuenca.