Entre o sonho e o real: cem anos de Strindberg

Literatura

12.06.12

Algumas décadas atrás, vários artistas e intelectuais se reuniram em uma mesma cidade e é possível dizer que esse encontro gerou uma onda de criatividade que reverbera até nossos dias. Ainda aproveitamos o influxo criativo desse tempo e desse espaço.

Se pudéssemos determinar um marco inicial – arbitrário, a cargo de ilustração -, poderia ser Charles Baudelaire e o lançamento de As flores do mal, em 1857. De forma mais específica, o Baudelaire resgatado por Walter Benjamin em sua leitura de Paris e do século XIX. Pois este é o tempo e o espaço em questão: Paris na passagem do século XIX para o XX. Uma sorte de onda mnêmica que começa com As flores do mal e vai até a morte de Walter Benjamin, em 1940.

 

Baudelaire por Félix Nadar (1854)

Inúmeras são as cartografias possíveis para esse período, cada uma delas realçando nomes, datas, realizações e movimentos artísticos. O local físico, contudo, não muda, é Paris – pois é nesta cidade que todos se encontram, e mesmo que alguns não morem efetivamente lá, sempre dão um jeito de por lá permanecer, na medida de suas possibilidades. Isso porque todos sabiam que era neste lugar que se encontrava o substrato criativo da época.

 

Paris em 1900, por ocasião da Exposição Universal

Me proponho a exumar uma figura de fundo desse contexto que, colocada em perspectiva com outros nomes do mesmo período, nos ajudará a compreender tanto a figura específica quanto o cenário geral.

August Strindberg nasceu em Estocolmo, em 1849, e morreu na mesma cidade exatamente cem anos atrás. Foi um daqueles escritores inquietos e prolíficos, que escreveram livros sobre os mais variados assuntos, bem como uma extensa obra ficcional (exemplos paradigmáticos dessa estirpe seriam Goethe, Tolstói e Victor Hugo).

Foi um daqueles escritores que mergulharam profundamente na loucura, realizando, a partir disso, obras perturbadoras, nas quais não se identifica precisamente o que é método e o que é aleatoriedade (exemplos paradigmáticos dessa estirpe seriam Hölderlin, Nietzsche e Poe – que morreu no ano em que Strindberg nasceu).

Foi um daqueles escritores que realizaram magníficas obras literárias em mais de um idioma, já que sua principal obra, Inferno, foi escrita originalmente em francês, durante a estada do autor em Paris (exemplos paradigmáticos dessa estirpe seriam Joseph Conrad, Beckett e Nabokov).

Além de tudo isso, Strindberg via o mundo de forma muito particular, e essa perspectiva estranhada aparece em todas as facetas de seu trabalho artístico. Para ele, o mundo estava preenchido por mensagens secretas, por uma série de indícios e traços que percorriam todas as esferas da vida humana – cabia ao indivíduo prestar atenção e, depois de muita disciplina, começar a desvendar os enigmas do real.

Há uma profunda carga detetivesca nesse modo de ver as coisas, e nesse sentido Strindberg está muito próximo de seu contemporâneo Sherlock Holmes (a primeira história de Conan Doyle (1859-1930) com o personagem apareceu em 1887). Daí decorre também o interesse de Strindberg pelo ocultismo e todas as variantes que procuram, de certa forma, decodificar os enigmas do mundo, como a hipnose, o mesmerismo, a interpretação de sonhos, astrologia, numerologia, entre outros.

O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) era a principal figura de contraste diante de seu contemporâneo Strindberg. Ambos escreviam intensamente para o teatro da época e ambos ultrapassaram os limites de suas cidades e nações – com a diferença que Strindberg estava sempre por um fio, enquanto Ibsen era sempre equilibrado e bem-sucedido.

Mesmo muito tempo depois de suas mortes, as obras de Ibsen e Strindberg seguiram inspirando paixões contrastantes. Não é curioso que James Joyce tenha escolhido Ibsen como espécie de “heroi intelectual” e que Kafka tenha feito o mesmo com Strindberg? Kafka escreveu em seu diário: “não leio Strindberg para ler Strindberg; leio Strindberg para descansar minha cabeça em seu peito”. Joyce, por sua vez, resolveu aprender norueguês apenas para escrever uma carta para Ibsen – para expressar toda sua admiração de forma ainda mais respeitosa.

Em alguns momentos, Strindberg parecia uma espécie de Menocchio tardio – aquele fantástico e criativo personagem que via Deus nos buracos de um queijo em decomposição, cuja história Carlo Ginzburg relata em seu livro Os queijos e os vermes. Um Menocchio extemporâneo porque Strindberg insistia em buscar o divino nas coisas mais sórdidas e descartáveis da vida cotidiana – um mendigo que pedia esmola, um pedaço de jornal que é levado pelo vento, um sapato sem par abandonado na rua. Strindberg colocou todas suas energias no projeto de representar artisticamente sua visão de mundo, e fez isso com o teatro, a narrativa, o diário, o ensaio, o experimento científico amador, o matrimônio, o desespero e a solidão.

Os principais acontecimentos da vida de Strindberg ocorreram a partir da década de 1890 – quando nasce o cinematógrafo, quando Freud começa a desenvolver a psicanálise, quando Aby Warburg faz sua viagem aos índios Hopi, quando Nietzsche perde de vez a razão e quando os primeiros aviões começam a voar. Entre Berlim e Paris, Strindberg entra em contato com uma série de intelectuais que irão fertilizar suas ideias e seu potencial – um movimento que, no caso da amizade de Strindberg com Munch, é bastante recíproco.

Além da literatura, Strindberg dedicou-se também à imagem, tanto com a pintura como com a então recente fotografia. Em Berlim, no ano de 1892, conhece o pintor norueguês Edvard Munch e durante cinco meses eles se encontram quase todos os dias, pintando juntos, discutindo pontos de vista técnicos e filosóficos acerca da cor, da perspectiva e da própria possibilidade de representação. Munch e Strindberg encontraram-se como almas afins, unidos por uma concepção de mundo trágica e pessimista, colocada em funcionamento a partir de uma recordação da infância e da família como espaço de dor e negligência. O retrato mais conhecido de Strindberg foi pintado por Munch (não é irônico que, anos mais tarde, ele tenha pintado também um retrato de Ibsen?).

 

Retrato de Strindberg feito por Munch em 1892

Munch e Strindberg eram inseparáveis e criaram, juntos, um círculo de amigos que se encontravam todas as noites em um bar de Berlim chamado O porquinho negro – Zum schwarzen Ferkel. Discutiam os progressos diários de suas obras, auxiliados por quantidades abusivas de álcool.

Por conta do interesse comum por uma mesma mulher, que também frequentava O porquinho negro (que era chamado por seus frequentadores mais assíduos somente como Porquinho), Strindberg e Munch decidiram pintar obras utilizando o mesmo tema – o ciúme. Enquanto o resultado alcançado por Strindberg é mais alusivo e enigmático, a obra de Munch é de uma figuratividade difusa e perturbadora.

 

“Noite de ciúmes”, quadro de Strindberg

 

 

“Ciúmes”, quadro de Munch

Para Strindberg, a obra de arte nasce de um cruzamento de técnicas espaciais, temporais, iconográficas, etnográficas e antropológicas – forças cognitivas em intenso combate no cerne da criação artística. Filiado a uma tradição esotérica impregnada pela cosmologia, pela astrologia e pela sobrevivência do arcaico no presente, Strindberg explorou tanto o cruzamento entre os campos artísticos quanto as interseções entre o mundo do sonho e o mundo real.

O que sobrevive de Strindberg hoje é sua visão da obra artística como uma obsessão transformada em ideia. O que sobrevive de Strindberg hoje é sua reflexão, materializada em textos e imagens, sobre as derivações da arte dentro do substrato de signos e gestos que chamamos de tradição cultural – a criação de um arquivo do pensamento, em suma. “Pode um homem valer alguma coisa?”, Strindberg se pergunta em Inferno, “só encontrando a si mesmo no fundo de um abismo”.

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