Esquecer para lembrar – por José Carlos Avellar

Cinema

06.09.13

Hoje, dia 6 de setembro, o Instituto Moreira Salles lança o oitavo título de sua coleção de DVDs: O emprego (Il posto, 1961), do cineasta italiano Ermanno Olmi. Por ocasião do lançamento, o IMS-RJ apresenta no dia 8 de setembro o especial Ermanno Olmi, com a exibição de O emprego e outros dois títulos: A árvore dos tamancos (1978), tema desta coluna, e A lenda do santo beberrão (1988).

"A árvore dos tamancos", de Ermanno Olmi

A árvore dos tamancos, de Ermanno Olmi

Algumas vezes é necessário esquecer tudo o que se sabe de cinema para fazer um bom filme. Um exemplo é A árvore dos tamancos (L’albero degli zoccoli). Durante três anos, cercado por uma equipe técnica de apenas quatro pessoas, o realizador Ermanno Olmi trabalhou com os camponeses de uma fazenda de Bergamo sem  pensar em si mesmo como alguém que pertence ao mundo do cinema. Como explicou no lançamento do filme no Festival de Cannes, em 1978:

Procurei esquecer o cinema e deixar bem claro em minha cabeça que antes de  tudo eu sou um camponês. Não inventei nada. Não fiz como o poeta que cria de  dentro de sua realidade particular, voltei a conviver com os camponeses. Afinal de  contas nasci e me criei nesta fazenda, voltei para cantar em coro. O filme é de  minha avó, é dos camponeses de ontem, é dos camponeses de hoje, é da terra de  ontem, é da terra de agora. Eu me limitei a dar o assobio de partida, assim como  fazemos nos coros daqui. Dei o sinal de partida para todos cantarem em conjunto.  E cantar em som direto. Não só no sentido técnico daquilo que no cinema chamamos de som direto. Direto porque as pessoas falam seu próprio dialeto.  Direto porque, ultrapassado o embaraço dos primeiros dias, as pessoas  compreenderam que eram as verdadeiras protagonistas do trabalho. Camponeses  representando camponeses, vivendo as histórias que vivem todos os dias. Eu  escrevi estas histórias, é verdade, mas as pessoas logo se reconheceram nelas, e nem poderia ser de outro modo, porque os relatos saíram da memória. São histórias contadas por minha avó, ou que eu mesmo presenciei quando criança.

Tudo se passa num período não muito preciso, na primeira metade do século passado. A rigor não existe propriamente uma história, mas incidentes mais ou  menos soltos, independentes, em torno do dia a dia de cinco famílias de camponeses empregados por um grande proprietário de terra que retém dois terços da colheita e todos os animais nascidos na fazenda em troca da cessão das terras e dos utensílios de trabalho.

O episódio que dá o titulo do filme é contado em apenas cinco cenas. A primeira vem antes dos letreiros de apresentação, as outras quase ao final da narrativa. No  início um casal de camponeses, Batisti e Batistina, é chamado à  sacristia para assumir perante Deus o compromisso de enviar o filho, Minek, de sete anos, para a escola. “Ele foi escolhido por Deus para ser um homem inteligente”, diz o padre, “é preciso tirá-lo do trabalho no campo para que ele aprenda a ler”. Batisti ouve calado, obedece, mas de volta à fazenda compartilha sua preocupação com a esposa: “O que vão dizer quando virem o filho de um camponês indo à escola?”

A segunda cena vem mais ou menos na metade do filme. Os pais conversam com o filho sobre as  coisas que ele aprende na escola, meio incrédulos às vezes, meio curiosos em outras. A terceira aparece já no trecho final. Na saída da escola, Minek quebra um dos tamancos e  chega em casa descalço, os pés gelados pela neve do caminho. A quarta vem logo depois. Batisti sai ao cair da noite com um machado escondido sob o casaco,  escolhe uma árvore à beira de um canal e tira dali a madeira para fazer um novo  tamanco. A quinta cena encerra o filme. O proprietário descobre a árvore cortada, apesar dos cuidados de Batisti em ocultar os galhos partidos e em cobrir o  tronco com lama. Depois de uma breve investigação, descobre Minek com os tamancos novos e expulsa a família de suas terras.

Esta é a única ação de A árvore dos tamancos construída com uma carga dramática de ficção. Todas as demais cenas parecem pequenos incidentes cotidianos, e embora dramáticas estão mais próximas de um registro documentário. E mesmo a expulsão de uma família porque o pai derrubou uma árvore para calçar o filho tem sua dramaticidade ligada mais, digamos, à maneira de filme documentário da narrativa do que aos fatos narrados. Ou seja, o conhecimento da ação não esgota nem prejudica a visão da cena. Não é a surpresa diante do acontecimento, não é o inesperado da expulsão que importa, mas as observações que vão sendo feitas durante a ação.

http://www.youtube.com/watch?v=juvT6B_c0VA

O cinema, em geral, preocupa-se em contar ações de dramaticidade evidente, em primeiro plano, diretamente visível no incomum ou no exagero do gesto, e narrar com a maior economia possível. Põe os olhos sobre aqueles pedaços de tempo em que parecem acontecer os fragmentos mais importantes, os dados mais característicos da cena. Condensa, faz um resumo, procura tornar a coisa de entendimento claro e imediato. E passa logo a outro assunto. Um garoto sai da escola, quebra o tamanco numa pedra do caminho, tenta consertá-lo, não consegue, chega em casa descalço. O que costuma fazer o cinema aí? Um plano rápido para cada pedaço da ação, ou tudo resumido num plano só. Uma vez apresentado o fato, abandona-se a cena. Olmi faz o contrário. Aqui, nos filmes feito anteriormente, como O emprego, realizado dezessete anos antes, em 1961, e nos filmes feitos depois, como A lenda do santo beberrão, realizado dez anos mais tarde, em 1988. Depois que a ação se encontra já apresentada para o espectador, A árvore dos tamancos começa. Vai devagar,  se repete, fica sobre o quase nada, examina em detalhes o gesto das pessoas.

O que importa não é contar a história da árvore derrubada para fazer um tamanco, mas os pequenos quase nadas contados entre as cinco cenas que se referem ao título. Importa o fascínio da neta pelo avô que começa a cuidar de um  cantinho de terra ainda no inverno para ter o gosto de ser o primeiro a colher tomates na primavera. O milagre obtido pela mulher que contraria o veterinário e cura a doença de sua vaca com água benta. A tensão do camponês que acha uma moeda na rua e procura escondê-la sob a ferradura do cavalo. A festa para  matar um porco. O namoro, casamento e lua-de-mel de um casal num convento, com a freira tia da noiva em Milão. Importam coisas ainda mais banais na aparência: a neve do inverno, os primeiros verdes da primavera, o rio, a terra, as  árvores, a natureza. Esquecer para lembrar o que foi esquecido, esquecer para recuperar a memória, explica Olmi:

Não se trata de voltar por nostalgia a um mundo hoje impossível. É uma volta movida pelo desejo de confrontar de novo uma realidade que colocamos de lado muito rapidamente. Esquecer o cinema para consultar a memória, para voltar aos testemunhos de minha avó e de velhos camponeses, de gente que viveu e vive ainda em condições miseráveis, e que se acostumou a construir valores bem definidos herdados do contato direto com a terra, aprendidos com a natureza. A civilização agrícola, depois de uma experiência de milênios, amadureceu uma relação com a terra onde os acontecimentos naturais, mesmo os menos compreensíveis, fazem parte da grande lógica da vida.

Aqui e ali convém esquecer o que se sabe de cinema para fazer um bom filme. Mas aqui, para ver bom cinema, é preciso não esquecer o “Especial Olmi” neste domingo, 8 de setembro, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. Ao lado de O emprego, oitavo título da coleção de DVDs do IMS, serão exibidos A árvore dos tamancos e A lenda do santo beberrão – três exemplos do cinema desse diretor que procura esquecer tudo o que sabe para reaprender a ver o mundo a partir do gesto do dia a dia das pessoas comuns.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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