A memória que me contam e Noites de Reis, dois filmes brasileiros que estreiam hoje (14 de junho) e são completamente distintos em tema, estilo e ambientação, têm entretanto algo em comum: em ambos, os eventos dramáticos cruciais já ocorreram quando a narrativa começa e os personagens se esforçam por lidar com um passado doloroso e desestabilizador. Ambos – a exemplo do que ocorria também em Hoje, de Tata Amaral – são assombrados por fantasmas, que, como sabemos, são projeções da culpa, do medo e do desejo.
Dito isso, vamos aos filmes. A memória que me contam, de Lúcia Murat, põe em cena um grupo de amigos de meia-idade, todos ex-guerrilheiros que viveram o conhecido calvário de prisão, tortura e exílio, reunidos agora em torno de uma companheira de lutas, Ana (Simone Spoladore), que agoniza na UTI de um hospital carioca. Ela é uma espécie de morta-viva, de quem todos falam usando o verbo no pretérito.
http://www.youtube.com/watch?v=kKz3cwUdW-Y
Com a aparência que tinha na juventude, Ana – inspirada na guerrilheira real Vera Silvia Magalhães (1948-2007), a quem o longa é dedicado – surge a cada um dos seus velhos amigos, ora como anjo imaculado, ora como consciência moral verbalizada, mas sempre como uma idealização da combatente ideal: valente, generosa, bem-humorada, linda.
Ajuste de contas pessoal
O artifício dramático-narrativo é propício para a diretora colocar em questão dilemas e contradições internas da esquerda armada. Afinal, por que tipo de sociedade eles lutavam? Que valores e sentimentos nutriam entre si? Como lidavam com as condutas “desviantes” (incluindo a homossexualidade), a delação, a traição? Tudo isso sobre o pano de fundo atualíssimo da investigação dos crimes cometidos pela repressão policial-militar nos anos da ditadura.
Poucas pessoas poderiam abordar esse espinhoso tema com tanta autoridade e legitimidade como Lúcia Murat, ela própria ex-guerrilheira presa e torturada. Ela está falando de si própria, de sua turma, e é lícito ver a personagem da cineasta Irene (Irene Ravache) como seu alter ego.
Personagens e tipos
Se essa ligação visceral com o tema é um dos trunfos do filme, talvez seja também responsável por suas fraquezas. A mais evidente destas, a meu ver, é o desejo de abarcar praticamente todos os aspectos da questão, bem como todas as trajetórias possíveis de ex-guerrilheiros, com cada um dos personagens, presentes ou citados, representando uma delas (há o que se tornou ministro, há o que virou cínico e sarcástico, há a obcecada pela culpa etc).
A obsessão com a clareza leva a uma excessiva verbalização dos assuntos, e todas as conversas começam ou terminam com “a nossa geração fez isso, ou fez aquilo”. Com isso, apesar da segurança narrativa e da consistência da encenação, tudo soa um tanto esquemático. As situações não “respiram”, os personagens parecem não ter vida própria, cumprindo apenas a função de tipos – sina da qual escapam, ao menos em parte, os personagens mais jovens, como os filhos homossexuais de Irene e de seu amigo Ricardo (Otávio Augusto).
A ânsia da visão totalizante (discussão política, estética, moral) e de registro da atualidade ocasiona até a introdução na trama de um preso político italiano (Franco Nero, o eterno Django), referência evidente ao caso Cesare Battisti.
Em suma, A memória é um acerto de contas legítimo, necessário e oportuno, que traz em sua própria textura as marcas (eu quase dizia as chagas) de sua excessiva aproximação com um objeto ainda ardente, espinhoso, radiativo.
Tragédia concentrada
Se o filme de Lúcia Murat é uma obra polifônica, panorâmica, com muitos personagens e o foco narrativo se deslocando ao longo do tempo (da década de 1960 a 2012) e do espaço (Rio, Brasília, Paris), em Noites de Reis tudo se concentra em três ou quatro personagens, poucos dias e uma única pequena cidade (Paraty, não nomeada).
http://www.youtube.com/watch?v=rXUQPYpbBU8
Ali, na época dos tradicionais festejos de Reis (início de janeiro), uma mulher (Bianca Byington) se confronta com a necessidade de superar o insuperável: a lembrança da morte de seu filho pequeno num incêndio, alguns anos antes.
De certo modo, são dois os fantasmas que a atormentam. Um deles, o marido (Enrique Diaz) sumido desde a tragédia (como o protagonista de Paris, Texas), materializa-se em carne e osso de repente, justo quando ela redescobria o amor em outro homem (Flavio Bauraqui). O outro segue oculto, apenas evocado nas conversas à meia-voz, em meias-palavras: é o próprio filho morto.
Documentário e ficção
Assim como em seu longa anterior, Praça Saens Peña, Vinícius Reis transita aqui entre o documentário e a ficção, só que agora de uma maneira muito mais sutil, articulada, madura.
O início do filme é exemplar dessa passagem quase imperceptível entre um registro e outro: um terno de Reis, com seu alarido, suas fantasias extravagantes e seu batuque, entra numa casa e o líder do grupo, de acordo com a tradição, declama em versos improvisados a história da família local. Ainda que em linguagem indireta, alusiva, os versos do folião expõem a tragédia do menino, e a câmera, muito sutilmente, mostra a mudança nas expressões dos ouvintes, em particular da dona da casa, mãe do menino morto. É um momento belíssimo de cinema, de uma força tremenda. Quase sem perceber, passamos da festa à tragédia.
Água e fogo
No mais, o filme todo é de uma delicadeza extrema na abordagem do trauma, esquivando-se das armadilhas do melodrama fácil. Algumas coisas dignas de nota (e de louvor): a presença regeneradora da água – da piscina, do mar, do pano que esfrega as paredes do quarto fatídico – num contexto em que o fogo é o mal oculto; a recorrência de situações em que um personagem observa outro dormindo (em especial, pai e filha alternadamente); o aproveitamento dramático preciso da paisagem natural e arquitetônica de Paraty, com uma reverberação metafórica das ideias de fachada, patrimônio e memória.
Noites de Reis (Vinícius Reis, 2012)
Por fim, é preciso destacar o esplêndido desempenho dos atores, sobretudo os que encarnam a família nuclear: Enrique Diaz, Bianca Byington e a menina Raquel Bonfante, no papel da filha que restou. É admirável, pela sensação de angústia e desamparo que transmite, a cena em que a menina está num bote com o pai e este mergulha no mar e não reaparece até o final da cena.
O filme começa e termina com uma folia de Reis. Retorna da tragédia à festa, tendo cumprido um ciclo ritual de catarse e redenção possíveis. Enfim, uma grande obra disfarçada de filme pequeno.