Tudo bem, perdemos a Copa, mas o cinéfilo brasileiro (pelo menos o paulistano, o brasiliense e o carioca) tem motivo para soltar fogos e bater tambor. Está começando hoje, 11 de julho, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, uma retrospectiva completa da obra de Fritz Lang (1890-1976), que exibirá até 24 de agosto os 41 filmes que o diretor realizou na Alemanha e nos Estados Unidos. A mesma mostra ocorrerá também no Cine Brasília (a partir de 24 de julho) e no CCBB do Rio (13 de agosto).
Não que os filmes de Lang, em si, sejam alegres ou festivos. Muito pelo contrário. O que unifica essa filmografia tão variada, que vai da saga mitológica à ficção científica, do policial ao faroeste, da aventura exótica ao drama moral, é uma visão sombria do mundo, fundada na convicção de que o mal está em toda parte. Ou, nas palavras do crítico americano Andrew Sarris, “uma visão soturna do universo em que o ser humano luta com seu destino pessoal e, inevitavelmente, perde”.
Destino e vingança
Desde sua primeira obra-prima incontestável, A morte cansada (1921) – o filme que fez Luis Buñuel decidir fazer cinema –, a noção de destino como força inexorável contra a qual o homem se debate em vão é a engrenagem do cinema de Lang. Intimamente articulado à noção de destino, emerge o sentimento de vingança que move boa parte dos personagens. Dito de outra maneira: é como se a vingança fosse o que resta ao indivíduo para reparar os danos e injustiças causados pelo destino, encarnado em vilões, grupos, instituições. Mas, ao contrário da vingança catártica dos faroestes espaguete ou dos caça-níqueis do tipo Desejo de matar, em Lang ela raramente é apaziguadora e, em todo caso, sempre chega tarde demais.
Cena de A morte cansada (1921)
Onipresença do mal, vingança tardia ou inútil. Em alguns casos prevalece o primeiro termo da equação: A morte cansada, todos os filmes do Dr. Mabuse, Metrópolis etc. Em outros, a ênfase recai sobre a vingança: Os Nibelungos, Fúria, Os carrascos também morrem, O diabo feito mulher, Os corruptos.
Simpatia pelos malditos
Outra constante no melhor cinema de Lang é a recusa do maniqueísmo. Para ele, conforme escreveu em seu dicionário pessoal, só havia duas espécies de indivíduos: os maus e os muito maus. Não há mocinhos ou heróis imaculados em seus filmes, e frequentemente sua simpatia vai para os malditos, os abominados, os monstros, os excluídos da convivência humana. Seja qual for o crime cometido, Lang sempre está contra a corja linchadora. Se há duas cenas capazes de sintetizar esplendidamente essa moral são estas duas, uma de M (1931) e a outra de Fúria (1936):
M (1931)
Fúria (1936)
O fato de o vienense Lang ter interrompido bruscamente sua esplendorosa carreira alemã por conta da ascensão do nazismo – o que o levou a começar toda uma nova vida na América – certamente acentuou sua amarga visão de mundo e deu outra consistência a suas obsessões.
Durante muito tempo os críticos de formação europeia avaliaram como “menor” a filmografia americana do diretor. É evidente que, na Alemanha, Lang tinha um controle maior de seus meios de produção, tendo chegado aparentemente ao ápice com os dois longas que realizou antes de fugir: M, o vampiro de Düsseldorf (1931) e O testamento do Dr. Mabuse (1932), ambos passíveis de ser vistos como prefigurações do nazismo.
Na América, sem dominar inicialmente o idioma e tendo que se mover dentro de uma indústria mais complexa e cheia de imposições, sua filmografia foi mais irregular, alternando obras-primas absolutas como Fúria, Os corruptos e Almas perversas, com filmes menos bem-sucedidos, como O segredo da porta fechada e O diabo feito mulher. Claro que sempre há um componente subjetivo dessas avaliações, e outros críticos farão o juízo oposto.
Narrativa implacável
O importante é que, tanto nos filmes alemães como nos americanos, a inexorabilidade do destino se traduz numa linguagem narrativa igualmente implacável, em que cada plano solicita e determina o seguinte, cada diálogo provoca uma réplica inevitável, em que não há, em suma, espaço para o acaso, o jeitinho, o improviso. Poucos diretores na história do cinema tiveram uma consciência tão precisa do lugar exato onde colocar a câmera e como desenhar com a luz e a sombra o drama de cada cena – uma arte adquirida e aperfeiçoada em Berlim, na era de ouro do expressionismo alemão.
Lang voltou à Alemanha no final dos anos 50 e lá realizou seus últimos filmes, mas sob condições bem diferentes daquelas da produtora UFA pré-nazista, nas quais ele dera ao expressionismo algumas de suas joias mais reluzentes. Depois de rodar na Índia duas aventuras românticas interligadas, O tigre de Bengala e Sepulcro indiano, encerrou com chave de ouro a série do Dr. Mabuse, com o fantástico e premonitório Os mil olhos do Dr. Mabuse (1960), que diz muito sobre nossa época de controle do indivíduo por câmeras de vigilância.
Em 1963 teve ainda uma aparição fulgurante nas telas, em O desprezo, de Jean-Luc Godard. Ali, no papel de si mesmo, ele filmava no Mediterrâneo uma adaptação da Odisseia de Homero. E ficamos imaginando que maravilha seria, nas mãos desse gênio do cinema, aquela epopeia inesgotável de vingança, destino e morte.