Histórias sem fim

Literatura

24.03.14

(A encadernação, o papel, as ilustrações, as cores, as texturas, a tipografia, o ritmo, as palavras, os personagens, os cenários, as ações, o autor, o leitor, o livro).

Cantiga, de Blexbolex, lançado no Brasil pela Cosac Naify com tradução de Alexandre Barbosa de Souza e Érika Nogueira Vieira, é um livro infantil que recebeu elogios ao redor do mundo, sendo incluído em várias listas de livro do ano em 2013. Blexbolex é pseudônimo do francês Bernard Grander, que além de escritor é ilustrador e quadrinista, com formação em serigrafia. Autor de livros sofisticados e atraentes, tem um cuidado quase obsessivo com todos os detalhes de cada obra, tanto em relação ao conteúdo quando ao próprio objeto.

E esta Cantiga segue no mesmo tom: o volume de capa dura, pequeno mas encorpado, instiga a curiosidade logo de saída. O que haveria por trás daquelas ilustrações fluorescentes? A princípio, se trata do trajeto de uma criança voltando da escola para casa. São sete capítulos, e a única narração mais extensa é apresentada na abertura de cada um: o grosso do miolo é composto por ilustrações sequenciais acompanhadas de uma única palavra em letra cursiva, como numa lista ilustrada. No primeiro capítulo: a escola, o caminho, a casa. No segundo, a escola, a rua, o caminho, a floresta, a casa. E por aí.

O caminho

Cada capítulo tem uma extensão sempre crescente, composta por agregação. Mais um capítulo, e novos elementos – personagens, cenários, peripécias – vão sendo adicionados na narrativa, que assim avança e ganha complexidade. (Se não me engano há em música uma forma construída dessa maneira, mas não lembro o nome, nem se de fato existe. Como decidi não recorrer ao Google, fica apenas este talvez entre parênteses: a existência, o tempo, o corpo, a memória, a derrocada).

Essa estrutura bifurcada e em camadas trabalha em conjunto com a lógica onírica da narrativa e seu tom soturno, que contrasta com a paleta viva de cores, criando uma atmosfera ideal de estranheza. Cada página é mais um elo na corrente de uma narrativa que, mesmo às vezes virando – literalmente – de pernas para o ar, de uma forma ou de outra acaba sempre voltando ao ponto de partida. Ainda assim, sem jamais ter a mesma leitura. Como escreve Blexbolex na apresentação, temos aqui “uma história antiga como o mundo: ela recomeça a cada dia”.

O desconhecido

Satisfeito com o livro, resolvi que o verdadeiro teste da eficácia de Cantiga só poderia ser realizado por leitores infantis. Para isso arregimentei os irmãos Alice, de quatro anos, e Giuliano, de seis, que também calham de ser meus filhos. Após duas ou três leituras, ambos se encantaram e guardaram na memória os primeiros capítulos. Brigavam para virar as páginas e apontar cada um dos elementos, enquanto as legendas vinham em jogral: a escola, o caminho, a casa. O fascínio pelo personagem “o desconhecido”, o mais próximo de um protagonista que se encontra no livro, se expandiu para além das leituras, e ele começou a surgir em desenhos e fantasias cotidianas.

A estrutura do livro é absorvida pelas crianças de forma quase intuitiva, e em poucas leituras elas não apenas começam a preencher as lacunas – que em dado momento transbordam da tessitura da história e invadem graficamente o próprio texto: nas legendas das ilustrações, ao invés de palavras solitárias, brotam silêncios – como também a criar sua própria extensão da cantiga, suas narrativas paralelas: novas aventuras do desconhecido, o ponto de vista do duende aprisionado na gaiola pela bruxa, a vida pregressa dessa mesma feiticeira e sua amizade com os demônios e assim por diante, elaborando capítulos entre capítulos, criando prólogos e epílogos ausentes das páginas do livro.

Os ladrões

Isso faz com que a leitura em grupo funcione muito bem, mesmo com o que poderia a princípio ser um problema: cada minileitor quer levar a história para um lado diferente, interpretar a dobradinha ilustração/texto ao seu gosto. Mas não é assim com qualquer livro, em qualquer idade? De certo modo essa dinâmica reflete a maneira como contos de fadas e histórias infantis foram tomando forma no grande telefone sem fio da tradição oral, dando origem a versões diferentes e novas histórias. E é nesse caráter de máquina de criar narrativas que Cantiga se mostra mais bem realizado, um livro de livros, uma genuína e enganosamente simples fonte de histórias sem fim.

* Daniel Pellizzari é escritor e tradutor literário, autor de Digam a Satã que o recado foi entendido (Companhia das Letras, 2013), entre outros.

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