Infância paulistana

Correspondência

18.05.11

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Meu bem! (gostou?)

Da última vez, prometi que na carta seguinte, esta aqui, tentaria reproduzir a experiência olfativa e epidérmica da minha São Paulo dos anos 1950, durante a chamada primeira infância.

Não interessa a você, e talvez nem a mim, a série de fragmentos que inauguram minha biografia precoce; esta começa em Campinas, na casa de dos avós maternos. Da infância paulistana, evoco espontaneamente a visão do céu muito alto, de um azul cristalino, acompanhado da sensação da pele arrepiada ao contato com o ar picante, geladinho, de um outono sem data. Também gosto de refazer mentalmente a visão do centro da cidade da perspectiva de uma criança pequena, quando o fascinante e o sinistro mal se diferenciavam. Grandes espaços, como o viaduto do Chá, passagens misteriosas como a elegante galeria Prestes Maia com suas longas escadas rolantes, me pareciam belos e assustadores. As lâmpadas amarelas que se acendiam às seis da tarde, quando íamos encontrar meu pai no escritório dele depois das compras, banhavam a cidade de uma luz melancólica.

Depois disso estou sentada no gramado do parque Ibirapuera: meus pais, Duto e eu – ainda éramos só dois filhos – em fevereiro de 1954 para ver a chuva de prata que um aviãozinho jogava sobre o povo, na comemoração do quarto centenário da cidade. Décadas mais tarde, em um jantar ao qual fui com você e Cristina em casa de Anna Luiza e Eduardo Escorel, ele e Zé Nogueira me mostraram o fragmento de um filme super 8 P&B, recuperado pela Petrobrás, onde ninguém menos do que Donga e Pixinguinha tocavam no palco do Ibirapuera. O show foi na mesma festa em que eu estava, alheia ao acontecimento musical que aos olhos da mulher de hoje é muito mais importante do que a dança dos bimotores no céu. No filme, Pixinguinha toca um choro (que não era o “Carinhoso”, ufa!) e há um momento em que Donga, muito alto e elegante (dizem que era bastante vaidoso) samba no pé, miudinho, naquele misto de samba e maxixe que os negros sabiam dançar no começo do século. Refiro-me ao XX, claro.

Ali o Duto perdeu um suéter tricotado pela minha avó. Pra você ver como é São Paulo, uma cidade onde se usa um suéter de tricô no mês de fevereiro. Não sei por que imagino que o suéter perdido era vermelho, o que era completamente impossível porque o vermelho era a minha cor (para camisetas, casacos de tricô, canecas de plástico, toalha de banho e escovas de dentes), sendo as de meus irmãos, sucessivamente, verde, azul e amarelo. A paleta inventada por minha mãe tentava fazer daquelas quatro crianças nascidas no curto intervalo de cinco anos uma espécie de conjunto harmônico, organizado, coisa que absolutamente não éramos.

Você deve ter notado que esbocei esse começo de carta na semana passada, antes de receber a sua quinta missiva.  Diante dela, interrompo as reminiscências a fim de não perder o mote que o começo do seu texto me sugere. Depois, se for o caso, continuo a falar de São Paulo dos anos 1950. Mas já adianto que, por conta dessa correspondência inventada pelo Flávio, descobri um jeito de recuperar memórias por escrito sem aquela chatice obsessiva de colocar a agenda do passado em ordem. As reminiscências são atemporais como as representações do inconsciente e nos atiram direto na temporalidade do passado, com uma força que as recordações intencionais não têm. Benjamin tinha razão nesse ponto e em muitos outros, como ao observar que as narrativas, capazes de transformar as vivências em experiências, se tecem no ato da transmissão. Não é o que estamos fazendo aqui, a dois?

Mesmo assim, interrompo os fragmentos do passado para escrever um pouco sobre essa diferença grande de temperamento, que é também de biografia, entre nós. Ao contrário do que você acaba de me escrever, gosto da sensação de que alguém, numa suposta hierarquia não autoritária, está além ou “acima” de nós, responsável por nos avisar se alguma besteira for inconveniente demais para a mídia (argh) que projeta nossa conversa no espaço. Gosto ainda mais de me reportar, como no caso atual, a um “superior hierárquico” como o Flávio Moura, tão mais jovem do que eu e você, e que só se manifesta para dizer, a cada vez: “linda carta”. Parece o pai benigno que elogia entusiasmado o menino/menina que lhe mostra um desenho troncho como se fosse uma obra de arte.

Também me agrada a ideia de que nossas palavras vão parar não sei onde, levadas pelo vento ou na forma de mensagem na garrafa jogada em alto mar. Sinto-me, como em muitas outras ocasiões em que me solto no mundo – não geográfica, mas existencialmente – como o eu lírico de um dos poemas de Ungaretti de que mais gosto:

Com

Minha fome de lobo

Amaino

Meu coração de ovelhinha.

Eu sou

Como o mísero barco

E como o oceano libidinoso.

E toda vez que me lembro desse poema, penso que o mísero barco vive à deriva no oceano libidinoso, ideia que também me agrada muito.

Antes que você venha alardear minha bravura, que é como gosto que você acredite que eu sou, saiba que, ao virar jornalista por improviso e necessidade, aos 22 anos, eu ainda não tinha me recuperado de uma crise fóbica que durou um ano, por conta de um incidente de percurso na família, que não quero expor aqui, mas você sabe qual foi. Eu era, desde menina, muito tímida. Brincava sozinha, e sozinha era uma aventureira, ousada, levada, fantasiosa – une enfant imaginaire, como Flaubert definiu a si mesmo.  No início da juventude saí da casa paterna porque queria liberdade, mas estava fóbica, com medo de andar sozinha na rua, de tomar ônibus para ir à USP (ainda bem que meu namorado tinha um carro), tinha o que hoje chamam de “crise de pânico”, acrescida da vergonha de pedir ajuda.

Comecei a escrever no Jornal do Bairro, o mais caseiro e modesto que pude encontrar, e mesmo assim tinha enorme inibição de entrar na redação. Quando o editor, Raduan Nassar, me chamou para conhecer a nova colaboradora, pensei que ia desmaiar de nervoso – na época eu nem sabia que ele era o grande escritor. Talvez nem ele soubesse. Não escrevia na redação por recato. Escrevia em casa. Achava indecoroso pensar e escrever na frente de tanta gente. E me lembro de que antes de cada artiguinho – o jornal era magro, cada colaborador tinha que dar seu recado em enxutas 40 linhas -, eu sentia um sono arrasador. Precisava apoiar a testa na máquina de escrever e dormir cinco ou dez minutos, para me sentir em condições de começar. No entanto, apesar disso tudo, que alegria ver o artigo publicado na semana seguinte, arrematado com as iniciais MRK (foi no Jornal do Bairro que tiraram o Bicalho do meu nome para a assinatura não ficar grande demais! Meu padrinho, irmão caçula de minha mãe, não me perdoa por isso). Que triunfo quando um conhecido dizia: então MRK é você? Gostei do artigo de ontem… etc.

Foi isso que me curou? Não tenho certeza. Só sei que, ao botar a cara no espaço público, encontrei não uma cura, mas uma energia contrafóbica que hoje me faz adorar justamente a mesma ideia que te angustia. Assim como superei o medo de avião do qual você deve se lembrar, e hoje me vejo com prazer projetada no espaço sem saber se vou aterrissar ou cair, também gosto de imaginar que minhas palavras podem voar pelos ares até não sei onde (tenho certeza de que não ao Polo Norte) para ser lidas e mal interpretadas, como todo texto, por não qualquer um. “O mundo só caminha pelo mal-entendido”, escreveu nosso querido Baudelaire. Então, vamos lá, contribuir com nossa singela correspondência para o blábláblá da Babel eletrônica. Vamos botar lenha na fogueira e aumentar o mal-entendido generalizado que faz girar a roda do mundo.

Não sem antes mandar beijos e carinhos pra você e Cri. Estou contente em saber que ela gostou do livrinho dos poemas do Boris Vian que enviei como presente de aniversário atrasado. Tomara que você leia também, e da próxima vez poderemos conversar sobre “Ils cassent le monde” ou “Je voudrais pas crever”, entre outros.

Na home do blog, a imagem que ilustra este post: cena do documentário Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba (2007), de Thomaz Farkas e Ricardo Dias

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