O destino é caprichoso. Dois dos maiores e mais populares escritores brasileiros do século XX completariam cem anos neste mês de agosto: Jorge Amado (dia 10) e Nelson Rodrigues (dia 23).
Os dois são também, de longe, os mais adaptados para o cinema e a televisão. Obras de Nelson Rodrigues inspiraram nada menos que vinte longas-metragens, de Meu destino é pecar (Manuel Peluffo, 1952) a Vestido de noiva (Joffre Rodrigues, 2006). Jorge Amado, por sua vez, teve livros seus transformados em dezessete longas, de Terra violenta (adaptação de Terras do sem fim pelo americano Edmond F. Bernoudy para a Atlântida, 1948) a Os velhos marinheiros ou O capitão de longo curso (de Marcos Jorge, atualmente em pré-produção). Isso tudo sem contar telenovelas, minisséries e curtas-metragens.
Os dois maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro nasceram da imaginação criadora de Jorge e Nelson: Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976) e A dama do lotação (Neville d’Almeida, 1978), curiosamente ambos estrelados por Sonia Braga.
Opostos e complementares
São dois autores antagônicos e complementares: o universo solar e exuberante de Jorge Amado, com suas criaturas movidas por uma incurável alegria de viver, contrasta com o mundo de paixões doentias e culpadas, destinadas à derrota ou ao desastre, que Nelson Rodrigues nos deu a conhecer. O erotismo, que no romancista baiano tem o sinal positivo de uma força transformadora, adquire na obra do dramaturgo pernambucano-carioca tonalidades sombrias e autodestrutivas.
Brasileiros até a medula, são talvez nossos ficcionistas mais universais. Cada um deles implica suas próprias dificuldades e perigos na transposição para o cinema. No caso de Nelson Rodrigues, é fácil resvalar para um cafajestismo cínico e escrachado, uma fetichização de taras e aberrações distante das preocupações morais e, no fundo, espirituais do escritor. Um bom exemplo disso, a meu ver, é Os sete gatinhos (Neville d’Almeida, 1980).
Com Jorge Amado, o perigo mais evidente é uma carnavalização do desejo, uma exaltação superficial e turística da sensualidade baiana – algo que ocorre flagrantemente, por exemplo, no filme Gabriela (Bruno Barreto, 1982). Outro risco é a acentuação excessiva do burlesco, dos personagens pitorescos, numa exacerbação daquilo que, na literatura de Jorge Amado, já estava a um passo do caricatural. Isso ocorre claramente nas telenovelas e minisséries baseadas no autor.
Pois bem, na vasta filmografia de origem amadiana e rodrigueana, cada crítico ou cinéfilo terá suas preferências pessoais. Não vou esconder as minhas.
Algumas escolhas
Não vi todas as adaptações de obras de Nelson Rodrigues, mas as que me parecem mais felizes são Boca de ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1963), A falecida (Leon Hirszman,1965) e as versões de Arnaldo Jabor para Toda nudez será castigada (1973) e O casamento (1976).
Curiosamente, o próprio Nelson Rodrigues não gostava muito da abordagem de sua obra pelos cinemanovistas. Implicava sobretudo com A falecida, por conta da ênfase de Leon Hirszman na realidade social em torno do drama da mulher (Fernanda Montenegro) que sonha morbidamente com seu próprio funeral.
Jabor, quase um especialista nos pecadilhos da classe média, identificou-se tão bem com o universo de Nelson Rodrigues que a inspiração deste é evidente mesmo em seus filmes posteriores, que não se basearam em obras do dramaturgo.
Para não atulhar de vídeos este texto, limito-me a colocar aqui um trecho do Boca de ouro de Nelson Pereira que, a meu ver, condensa tudo o que o escritor tem de mais poderoso, a tensão permanente entre o escracho e a tragédia, entre o sórdido e o sublime. De quebra, tem uma atuação esplêndida de Jece Valadão:
Jorge Amado tem dado menos sorte. Não inspirou no cinema nenhuma obra-prima, embora tenha gerado filmes agradáveis e divertidos como o citado Dona Flor e o mais recente Quincas Berro d’Água (Sergio Machado, 2010). Este último perdeu a mão ao apostar na ação frenética e num humor estridente e deixar quase de lado o aspecto de aventura espiritual que move o romance curto (ou novela) que lhe deu origem e que é talvez o melhor texto do escritor.
Aqui, um trecho bonito de Dona Flor, que deve muito à beleza e ao talento de Sonia Braga, bem como à música de Chico Buarque:
Por fim, uma compilação de trechos de Tenda dos milagres (1977), filme irregular que Nelson Pereira dos Santos (sempre ele) extraiu de um dos melhores livros de Jorge Amado. Uma curiosidade é a atuação do músico e compositor Macalé no papel do jovem Pedro Arcanjo, uma espécie de intelectual orgânico da comunidade afro-brasileira de Salvador. Com um pouco de boa vontade, podemos dizer que o desleixo na direção de atores e o caráter um tanto tosco da encenação é análogo ao estilo relaxado, baianamente autocomplacente, do próprio Jorge Amado:
http://www.youtube.com/watch?v=7d47FdetRQM
Quem estiver interessado numa reflexão ao mesmo tempo profunda e abrangente sobre a obra de Nelson Rodrigues no cinema deve ler o livro O olhar e a cena (Cosac Naify, 2003), de Ismail Xavier. Já o cinema de inspiração amadiana está compendiado e discutido no volume Jorge Amado e a sétima arte, de vários autores, organizado por Bohumila S. de Araujo, Myriam Fraga e Maria do Rosario Caetano, saindo do forno pela editora da Universidade Federal da Bahia. Boa leitura.
* Nas imagens que ilustram o post: os escritores Nelson Rodrigues e Jorge Amado.