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Caro Zé Geraldo,
Sua carta, que toma como ponto de partida Borges, tem uma perfeita concisão, como se contaminada pela escrita do grande mestre. Mas, curiosamente, o que mais me chamou a atenção foi Ademir da Guia visto por Rivellino. E me veio à cabeça o trato na bola dado por Ademir. A bola parecia atraída por seu corpo todo e depois era passada com a maior precisão e beleza possíveis. Mas é pouco o que digo, embora tenha aqui dentro de mim, jogando em minha memória, o craque palmeirense, que virou até poema de João Cabral de Melo Neto. Que aí vai: “Ademir impõe com o seu jogo/ o ritmo do chumbo (e o peso),/ da lesma, da câmara lenta,/ do homem dentro do pesadelo… Ritmo líquido se infiltrando/ no adversário, grosso, de dentro,/impondo-lhe o que ele deseja,/mandando nele, apodrecendo-o. … Ritmo morno, de andar na areia,/da água doente de alagados,/entorpecendo, e então atando/ o mais irrequieto adversário”.
Fiquei emocionado, Zé, ao saber que Rivellino, outro grande estilista da posição, se desconcentrava vendo o adversário jogar. E vou diagnosticar a crise do futebol brasileiro como a crise do meio de campo. Com esses caras mesmo que estão jogando, como Leandro Damião, o que não mudaria se fossem servidos por um Ademir da Guia, um Rivellino?
Outro que nunca me sai da memória – e faz tempo que não joga, faz tempo até que já morreu – é Didi. Esse também tinha um jogo de sedução com a bola e bem que mereceria um poema de um craque como João Cabral. Há uns três, quatro anos, fui ver um filme meio precário sobre a Copa de 58. Timaço, o de 58, e eu ali na plateia procurando reparar em cada detalhe dos jogadores e reproduzo aqui o tipo de jogo de mestre Didi. Ereto, elegante, matava a bola no peito, a dominava no espaço entre os dois pés, sem precisar olhar para ela, pois seus olhos já planejavam o melhor passe, dado com a parte interna do pé direito, como no passe dado a Mazola, no primeiro gol daquela seleção na Copa, marcado pelo centro-avante contra a Áustria. E as faltas que cobrava com suas famosas folhas-secas, definição que já diz tudo, mas não custa acrescentar que a bola vinha alta, sem muita força, para descair no ângulo da baliza. Onde está a estátua que deveria haver ali na rua General Severiano, com um escultor que fosse também mestre, digno de Didi?
E o Gerson? O que dizer de seus passes longos, como aquele passe para Pelé matar a bola no peito, deixar cair e fulminar o goleiro da Tchecoslováquia no segundo gol do Brasil na Copa de 70?
Poderia falar de tantos outros, até nos que só vi jogar quando criança, como Zizinho e Jair da Rosa Pinto. Enfim, os artistas da bola, hoje tão difíceis de se ver e vou incluir também um estrangeiro que me encantava, Zinedine Zidane. E confesso que sempre me orgulhei de ser amigo de um deles, meio-campista, Afonsinho, irretocável na sua categoria, nos seus passes e também no carregar a bola, e ainda como pessoa humana.
Dito isso, passo um pouco à literatura, mas sem valorizá-la mais do que a arte dos cidadãos acima citados. A primeira vez que li Borges foi o livro Fictions, em francês, e o meu sentimento foi de absoluta estranheza. “Mas então é isso?” Entendo, pois, a sua ex-namorada, pois Borges entra aos poucos na gente, a sua palavra mínima abrindo espaço para a transcendência. O que aliás acontece também com João Cabral, com sua secura, e dizem que Drummond disse que João Cabral ia acabar escrevendo poemas sem poesia. Cortázar, que li pela primeira vez também em Paris, como Borges, seduz o leitor mais facilmente com seus contos, mas há livros seus que são absolutamente experimentais, quase impenetráveis, como Prosa de observatório, um livro praticamente abstrato.
Mas o futebol não me saiu ainda da cabeça e imagino que Borges devia detestá-lo, Cortázar talvez não, e é sabido que gostava de jazz. Puig é muito bom, entre outras coisas porque mergulhava fundo numa literatura quase de fotonovela, de letra de tango e de filmes classe B. No mundo de seus personagens caberia o futebol, mas não me lembro de tê-lo visto tratando do tema. É pena, porque o futebol argentino bem mereceria ser retratado por um escritor de primeira, como Piglia, de quem estou adorando Alvo noturno.
De Arlt e Macedonio já falei em carta anterior, assim como antes falara em César Aira. E devo confessar que nunca li Bioy Casares e Saer. Agora, falar sobre minhas influências, como você pediu, não seria fácil, pois sempre li de tudo e um escritor procura encontrar sua própria voz e é possível que eu tenha conseguido, embora, em meus princípios, apontassem que eu tinha influência de Rubem Fonseca. Pode ser que sim, mas apenas em um ou outro conto e acho que a influência de Fonseca, curiosa que percebida mais em escritoras, se torna facilmente clichê, como a de Hemingway, que nem mesmo curto muito.
Mas continuo aqui fascinado por Rivellino observando Ademir da Guia dentro de campo. Isso engrandece os dois e daí passo para um outro jogador que atualmente escreve sobre futebol e faz isso muito bem: Tostão. Você, Zé Geraldo, é um ótimo jornalista esportivo (não esportivo também) e agora me lembrei de uma crônica sua sobre aquela bandeirinha, Ana Paula, que errou num jogo importante e foi muito maltratada e você apontou com muita propriedade que ela estava sendo vítima do machismo no futebol. E Ana Paula acabou posando para a Playboy, com todos os méritos.
Um grande abraço.
Sérgio
* Na imagem da home que ilustra este post: Jogo entre Brasil e Tchecoslováquia na Copa do Mundo de 1970