Décimo título da coleção DVD | IMS, As praias de Agnès traz um livreto com o ensaio Autoficções e cinema: Varda e a tecnologia transformadora do eu, em que Claire Boyle, da Universidade de Edimburgo, propõe uma análise desse filme “a partir das teorias literárias de autoficção que se desenvolveram na França” e do que Michel Foucault chama de tecnologia do eu. Esses dois pontos de apoio permitem “a compreensão de como o cinema trata e produz individualidade e também como as transformações autoficcionais moldadas em Les plages d’Agnès servem a algo mais do que um propósito diretamente lúdico ou desconstrutivo”.
O processo de Varda, narrando em primeira pessoa a história de sua vida, conclui Claire,”contribui para melhora do bem-estar do eu da diretora, de forma que corresponde ao conceito de Foucault de um conjunto de práticas benéficas e transformadoras desenvolvidas para melhorar a relação do eu com ele mesmo”. No texto a seguir, Varda conta como decidiu filmar sua autobiografia.
Com 78 anos, quase chegando aos 80, eu via os números 8 e 0 que avançavam em minha direção como um zoom ou como um trem e comecei a me dizer: ai, meu Deus! Tenho que fazer qualquer coisa para os meus 80 anos. Lembrei que Montaigne, no fim de sua vida, escreveu: ?creio que meus próximos, que vão me perder, gostariam de saber um pouco mais do que eu conheci’. Pensei mais ou menos isso com relação a meus filhos e netos. Não temos o hábito de perguntar tais coisas aos nossos parentes. Decidi então contar para eles como tudo começou, o que eu tinha na cabeça quando comecei a fazer filmes, falar dos amigos, das pessoas que encontrei, falar das coisas que fiz e falar também das pessoas que me fizeram. Só podemos falar do que vivemos, do que existe bem perto de nós. E eu tive muitas vidas. Fui fotógrafa. Fui cineasta. E, depois, uma jovem artista contemporânea aos 72 anos. Gosto muito dessa terceira parte de minha vida, que me permitiu tentar outros encontros, noutros lugares, criar outras relações com os espectadores. O melhor de tudo é poder experimentar diferentes formas de criação.
Mas, então: eu me aproximava dos 80 anos. Achei que deveria fazer algo. Nos lembramos sempre de passar por algum zero, mas quando era jovem jamais imaginei passar pelos 80. Oito e zero. Quando jovem eu achava que pessoas com 40 anos já eram velhas e os que tinham 50 então… Lembro que não me interessava por pessoas com mais de 50 anos e imaginava: acho que vou viver até os 45. Achava poético morrer jovem.
Jacques Demy tinha uma forte ligação com sua infância, eu não. Ele me contou sua infância, as memórias de sua infância, até a decisão de entrar para uma escola de cinema, e transformei as memórias dele em filme: Jacquot de Nantes (1991) e L’ Univers de Jacques Demy (1995). Já Les Plages d’Agnès é um espécie de passeio em torno da ideia de fazer um autorretrato aos 80 anos – com algum humor e com um certo distanciamento: aqui e ali eu faço uma palhaçada. Há uma cena divertida no filme, aquela em que reunimos os troféus de Jacques e os meus, a Palma de Ouro de Cannes (por Os guarda chuvas do amor / Les Parapluies de Cherbourg , 1964), o Leão de Ouro de Veneza (por Sem teto nem lei / Sans toit ni loi, 1985). São colocados sobre a areia, vem uma tempestade e eles desaparecem… Existe uma espécie de vazio na ideia de vitórias, recompensas, prêmios. Ao contrário, existe um valor na escolha de viver uma vida de artista, de resistir firme numa vida de artista. Jamais baixar a cabeça e cruzar os braços. Meu trabalho consiste em buscar formas cinematográficas, procurar criar todo o tempo um cinema que tenha uma escrita própria, um pouquinho diferente, um pouquinho nova. Filmei em digital. Poderia ter usado 35mm, mas queria fazer uma série de pequenos truques na imagem e se tivesse filmado com película de 35mm teria sido mais complicado. Com o digital, quando sentia falta de algo, ía com minha câmera até o jardim, até a entrada de minha casa. Filmava e cinco minutos mais tarde a imagem estava no filme.
Minha ficção se alimenta do documentário. Trabalho como uma jornalista antes de começar um filme de ficção. E, ao contrário, como uma ficcionista quando vou fazer um documentário. Em Les Glaneurs et la glaneuse (2000), filmei pessoas tão extraordinárias que parecem personagens de ficção. Existe uma dimensão ficcional no que consegui arrancar deles, no que eles queriam contar para mim. Les plages d’ Agnès é um documentário, mas os depoimentos foram escritos previamente. Muita coisa foi planejada como numa ficção. Escrevi a narração antes de começar a filmar. Na filmagem muitas vezes surgia uma ideia nova e eu dizia um novo texto para a câmera. Como mudei muito do que estava planejado, a montagem foi um processo longo – nove meses. Queria usar uma técnica de colagem, como a da pintura – como, por exemplo, a de Rauschenberg: uma colagem que não se limita a cortar em pedaços a imagem de uma pessoa de verdade, ou de uma paisagem de verdade, para depois recompor a figura. A colagem pensada não como um quebra-cabeças. Colagem só como uma colagem. Não quero definir meu Les plages d’Agnès como uma colagem. Acho que ele está mais perto de um disco voador, um objeto não identificado, porque pertence, e ao mesmo tempo não pertence, ao cinema documentário. Porque tem coisas encenadas, mas não pertence à ficção, pois, afinal, fala de gente de verdade: é a minha vida. São meus 80 anos.
MAIS
Os anéis da sequoia, por Maria Campaña Ramía – a curadora da mostra Retratos de família apresenta os filmes selecionados, incluindo As praias de Agnès.