Mímicos e mascarados

Literatura

03.10.13

Veronica Stigger

Opisanie ?wiata, novo livro de Veronica Stigger e seu primeiro romance, já apresenta desde o título uma apropriação curiosa: trata-se não apenas de uma cópia, mas de uma cópia da cópia. Ora, segundo explicou a própria autora, a estranha expressão significa simplesmente “descrição do mundo”, e é como se traduz, em polonês, o título do livro de viagens de Marco Polo, Il Milione. Quer dizer, como se não bastasse roubar o título do célebre mercador italiano, Stigger comete o roubo de uma versão falsificada e marginal, por assim dizer, ou seja, traduzida, de segunda mão. E por que justamente uma tradução polonesa? O crítico Alexandre Nodari, em um comentário sobre o livro, dá uma primeira pista: Jayme Adour, escritor de quem não se tem muita informação, em uma viagem antropofágica motivada por Raul Bopp e que deu origem ao livro (documentário) Oropa, França e Bahia, percebe o prenúncio da Segunda Guerra através da descrição de um “corredor polonês”. Opisanie seria o caminho de volta, sugere Nodari.

A referência ao corredor polonês encontra recorrência em Opisanie porque, além do mais, o livro tematiza o horror. Mas tematiza à sua maneira. Dessa forma, a travessia do navio que transporta Opalka, Bopp, o senhor Andrade, sua senhora e outros personagens de volta ao Brasil, figuras ao mesmo tempo familiares e absurdas, poderia ser lido justamente através da chave do castigo físico. Aliás, por contraste, quanto mais familiar for um personagem, mais absurdo será o outro. Seja como for, o corredor polonês deve ser lembrado não apenas como referência histórica e geográfica, mas também como o jogo – diremos assim por falta de melhor nome – em que “um indivíduo passa correndo entre duas fileiras de pessoas que lhe executam agressão física”. O trecho da chegada do “excelentíssimo senhor Netuno, deus dos mares”, como o leitor irá perceber, ilustra a hipótese com perfeição. Nele, toda sorte de violência é empregada como forma de “batismo àqueles que nunca antes cruzaram a célebre linha do Equador”.

Como disse, Opisanie é uma viagem de volta ao Brasil, mais exatamente à Amazônia. O “núcleo ficcional mínimo”, segundo a expressão do texto de Flora Sussekind na orelha da edição, consiste na relação (ou na falta dela) entre um filho doente, Natanael, na verdade à beira da morte, e o pai polonês desconhecido, Opalka. A viagem é empreendida após uma carta do filho, em que relata ao pai seu grave estado de saúde, clama por sua presença e, na maior parte do registro, faz recomendações minuciosas, parecendo inverter a relação de paternidade: “Preocupe-se em carregar apenas seus pertences. Se o senhor quiser trazer sua arma, traga-a. Se o senhor tiver também uma faca, porte-a consigo. Não creio que se utilizará delas ao longo da viagem, mas é sempre bom andar precavido”, provavelmente um aviso também ao leitor. Finalmente, para empreender a viagem, primeiro Opalka toma um trem, depois um navio e por último, quando chega ao porto brasileiro, é recebido com uma “picape Ford preta”. Os fins da travessia, seja como for, vão importar menos do que os meios.

Durante a viagem de trem, por exemplo, com o aparecimento repentino de Priscila, que parece dançar loucamente uma dança popular (em transe, possuída, como o dadaísta Hugo Ball) após supostamente ser mordida por uma aranha chamada Maria Antonieta, já temos indícios de que Opisanie será o pandemônio, lugar sem lei. Com a chegada de Netuno, então, teremos o próprio inferno na terra, ou melhor, já em alto mar, representado primeiro como se fosse um programa televisivo e sensacionalista, e depois como um campo de concentração. Por um lado, os tripulantes neófitos, significante usado por Netuno e que não por acaso tem conotação religiosa, são submetidos a provas que lembram o clima dos reality shows, como se Veronica Stigger perguntasse: como narrar depois da televisão? A cena começa com vários ajudantes trazendo objetos sugestivos (cordas, uma tábua de madeira, graxa, ovos, pedras do tamanho de uma bola de handebol etc.) e termina com personagens desacordados. Por outro, o “senhor da cadeira de rodas”, que não esboça reação durante as provas, por seleção natural, acaba sendo sacrificado, “eliminado”, jogado no oceano. Naturalmente, o clima era de festa.

Marco Polo

O romance tem ainda muitas outras feições: às vezes parece um filme mudo ou mesmo um musical, por ser tão marcado pelas coreografias e quase não haver diálogo; em outras, um circo provinciano, que causa riso e principalmente medo; ou uma espécie de rave intercontinental, com direito a “surubas na cozinha entre o pessoal da primeira classe”; e finalmente sugere a estética do “desenho animado”, como enfatizou Nodari. São formas talvez não de representar o inferno, mas de disfarçá-lo, embora tampouco disfarcem. De fato, o que deve singularizar a narrativa de Veronica Stigger não é a mera presença do horror ou mesmo sua associação com a comédia, algo tão recorrente em seus livros anteriores, e sim um tratamento específico disso: sua naturalização. E é provavelmente aí que entra o ofício de uma grande escritora: Stigger manipula o horror com a naturalidade de uma escrita quase coloquial, despojada, infantil, sem qualquer constrangimento. Nisso consiste sua dívida com a literatura de Kafka (“Numa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes…”) e, em outro sentido, de Beckett.

Entre fragmentos de um diário, cartas, bilhetes e uma série de imagens, tanto fotografias documentais de embarcações quanto propagandas variadas, lemos também uma narrativa (em terceira pessoa) que esmiúça coreografias, gestos, chistes, mímicas. Seus personagens, por sua vez, são descritos como tipos e, muito embora tenham nome, alguns dos quais roubados da história da literatura, como Bopp e Andrade, são como um boneco playmobil, “bibelôs de porcelana”. Nesse sentido, aliás, na medida em que é feito de colagens, objetos descartados, materiais distintos, gêneros dispersos, enfim, o romance pode ser lido também como uma verdadeira assemblage. O trecho em que Bopp e uma “pequena multidão” procuram Maria Antonieta, a suposta aranha que teria mordido Priscila, parece dar a pista de tal leitura. Durante a busca, o grupo acaba encontrando tralhas das mais variadas, que ocupam uma página inteira do livro: “três botões vermelhos, dois azuis, um marrom, quatro cor de pérola, uma vela de sete dias pela metade, um vasinho de flores quebrado, um macaquinho de porcelana sem cabeça”, e assim por diante, “erguendo um muro de coisas”, em momento de profunda empatia com o inorgânico, no melhor estilo Kurt Schwitters.

É interessante notar ainda que os personagens terminam como começaram, ou seja, sem definição e sem destino, fantasmas soltos, muito diferente do protagonista clássico, que se altera, perde algo, aprende qualquer coisa. Por um lado, os homens são mecânicos, repetitivos, “imponentes e frágeis” (Opalka, Bopp); por outro, são deuses, semi-deuses (Netuno, Nossa Senhora do Desejo). Nas últimas linhas de Opisanie, aliás, o que se tem é a imagem de um cadáver “com um meio sorriso no rosto” (mesmo morto, segue rindo) e afinal uma nova falsificação, já que Opalka promete escrever um romance com o nome de Bopp, e não as próprias memórias, solução que deve lembrar finalmente as tantas duplicações do livro: as duas Olivinhas, “que estão sempre de braços dados, como se fossem gêmeas siamesas”, e as quatro Clodiás, das quais “apenas uma é verdadeira”. Se desde o título, como procurei mostrar, a autora está procurando borrar a separação entre verdadeiro e falso, rosto e máscara (como na reveladora cena em que Netuno aplica breu no rosto dos neófitos), a proliferação destas personagens deve confirmar a hipótese. O que parece uma sereia, será (mais uma vez) um cadáver.

Finalmente, em ensaio intitulado “Mímico Dadá”, o crítico de arte norte-americano Hal Foster descreve a estratégia de um personagem da vanguarda: o “mímico traumático”. Sua estratégia central consiste na “adaptação mimética, por meio da qual o dadaísta assume as condições terríveis do seu tempo – a armadura do corpo militar, a fragmentação do trabalhador industrial, a mercantilização do sujeito capitalista – e as exacerba por meio da hipérbole ou da hipertrofia”. Em resumo, é exatamente a estratégia que Veronica parece adotar com a exploração ficcional da violência, da publicidade, da imagem televisiva, do clichê, enfim. De resto, o mímico, por não ter aptidão à fala, só pode imitar – isto é, copiar o outro – e por isso ele exagera. Seja como for, ele é também aquele que “permanece sentado mesmo depois de a cadeira ter sido puxada pra fora”. Afinal uma boa maneira de sobreviver à civilização.

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