Há pouco para ler sobre Modigliani em português. Apesar da centralidade do artista no cânone da pintura moderna, ultimamente ouve-se falar dele mais em razão dos valores estratosféricos que sua obra tem atingido em leilões – em 2010, uma escultura sua foi vendida por mais de 50 milhões de dólares na França – do que pelo surgimento de novas interpretações sobre seu trabalho.
A exposição aberta esta semana no MASP, em São Paulo, torna isso mais evidente. Daí o interesse de Modigliani, a life, de Meryle Secrest, biografia lançada no ano passado nos Estados Unidos. O livro traz um conjunto de informações suficiente para alterar algumas percepções cristalizadas sobre a trajetória do artista.
O principal achado está em mostrar como, desde sua morte, em 1920, aos 35 anos, o empenho de seus biógrafos e admiradores foi em romantizar sua vida desregrada, transformando-o numa espécie de gênio maldito (a começar pela associação entre seu apelido, Modi, e o termo em francês, maudit).
A imagem consolidada a seu respeito enfatiza a relação com álcool e as drogas como um ímpeto autodestrutivo que o levou à morte. O que Secrest mostra, com bastante documentação, é que Modigliani não bebia mais do que os colegas nem tinha sintomas de alcoolismo ou vício em outras drogas, que também consumia em taxas aceitáveis para o período. “Essa era uma época em que as drogas eram generalizadas e legalizadas, tratadas como rapé e usadas como tal.”
Segundo a autora, a saúde do pintor era muito frágil desde a infância. As bebidas o ajudavam a disfarçar os sintomas da tuberculose, contraída aos dezesseis anos, e permitiam aceitação em círculos dos quais seria banido se revelasse portar uma doença contagiosa. “É axiomática a versão segundo a qual Modigliani era um artista brilhante que arruinou sua saúde e morreu prematuramente por excesso de drogas e álcool. (…). Nós julgamos a partir de nosso contexto, em que a tuberculose é uma doença curável, e não a partir do contexto dele, em que não era.”
Outro ponto forte da biografia é a capacidade de situar Modigliani em relação aos colegas de geração. Jean Cocteau e Chaim Soutine são presenças constantes. Picasso é figura ainda mais forte – Modigliani foi a seu ateliê ver o recém-finalizado Demoiselles d’Avignon e reconheceu sua importância de imediato. Secrest confirma a ideia de que as máscaras africanas transpostas para as telas de Picasso são decisivas para Modigliani, que as adota como influência para seus retratos.
Há ainda a importância de Brancusi. Os dois eram vizinhos e Brancusi foi seu conselheiro durante suas incursões pela escultura, que experimentou entre os anos de 1910 e 1913. Secrest aventa a possibilidade de a coluna infinita, marca decisiva no trabalho escultórico de Brancusi, ser uma ideia de Modigliani, presente em telas suas desde 1911, seis anos antes das primeiras aparições no trabalho do colega.
As moradias compartilhadas em Montmartre, onde os artistas viviam em condições exasperantes, são descritas em bom grau de detalhe. E de forma seca, sem idealizações. As estratégias de Modigliani para sair sem pagar dos locais onde lhe serviam comida e as noites ocasionais que passava na rua ou em cozinhas de restaurantes fétidos dão a medida de uma vida “boêmia” em nada romantizada, em que os artistas aparecem como lúmpen sempre à beira da miséria.
Pode não ser um ensaio de fôlego crítico. Mas cumpre o que se espera de uma boa biografia e é decerto o material recente de maior envergadura à disposição de quem se interessar por essa exposição em São Paulo.
* Flávio Moura é coordenador do site do IMS.
* Na imagem da home que ilustra esse post: Le grand nu allongé, de Modigliani.