As cinebiografias ficcionais de figuras famosas e controversas da nossa cultura já formam um prolífico filão: Cazuza, Luiz Gonzaga, Chico Xavier, Renato Russo e, agora, Paulo Coelho. A diferença, aqui, é que o biografado está vivo, o que talvez tenha consequência para o que se lerá a seguir.
Se o maior perigo dos filmes do gênero é cair na hagiografia, Não pare na pista potencializa o risco, talvez deliberadamente: é uma hagiografia ao quadrado, pois se constrói como a história de uma iluminação, de uma elevação espiritual. Do mago ao santo é apenas um passo.
Como se sabe, Paulo Coelho teve uma trajetória rica e acidentada, e tudo isso, bem ou mal, está no filme: adolescência reprimida e revoltada, tentativa de suicídio, internação em sanatório, orgia de sexo, drogas e rock’n’roll, prisão pela ditadura, parceria com Raul Seixas, iniciação numa seita satânica, o trabalho de executivo numa gravadora, o êxito internacional como autor de best-sellers místicos.
Tudo estava escrito?
Todo esse magma de fatos e facetas poderia ser organizado em inúmeras narrativas fílmicas distintas. Apesar de sua estrutura descontínua, alternando três períodos da vida do biografado (adolescência, idade adulta, atualidade), o filme não esconde sua opção pela teleologia, isto é: desde a frase reiterada obstinadamente pelo Paulo Coelho adolescente (Ravel Andrade), “Eu quero ser escritor”, tudo se sucede como passos necessários para chegar à consagração final. Tudo estava escrito. Maktub.
Do ponto de vista da construção audiovisual e da mise-en-scène, é como se os realizadores tivessem assumido na própria forma os lugares-comuns místicos do escritor: muita contraluz, câmera lenta, predominância de closes e pormenores, ruídos exacerbados de modo antirrealista, remissão à iconografia religiosa (não por acaso o Paulo Coelho adulto, encarnado por Julio Andrade, lembra o Cristo em vários momentos), a voz tonitruante do “mestre” Jay (Nancho Novo). Ao que parece, ao aceitar o convite/encomenda para dirigir o filme, o jovem e talentoso Daniel Augusto, autor do excelente documentário Fordlândia e da fundamental série televisiva Mapas urbanos, resolveu comprar o pacote todo, isto é, a ótica adotada pela roteirista e coprodutora Carolina Kotscho.
Malandragem omitida
Talvez por conta disso, algumas coisas relevantes ficaram de fora, ou são tratadas de modo muito superficial no filme. Por exemplo: omite-se o fato de que foi Paulo Coelho quem introduziu Raul Seixas às drogas pesadas, coisa que o próprio escritor afirma no documentário Raul – O início, o fim e o meio, de Walter Carvalho. Aliás, no depoimento de Paulo Coelho no documentário, impecavelmente vestido em sua mansão suíça, fica patente uma característica do personagem que está ausente de Não pare na pista: seu humor autoirônico, seu assumido grão de malandragem, que é um dos elementos de seu charme pessoal.
Uma das passagens mais curiosas da vida de Coelho e Raul – seu envolvimento com a organização ocultista Ordo Templi Orientis (O.T.O.) – se reduz no filme a uma cerimônia de iniciação filmada como um clichê de aventura juvenil.
Liquidificador de referências
Há, por outro lado, bons achados, que poderiam ter sido mais desenvolvidos e quem sabe até servir de eixo a uma leitura do personagem. Refiro-me especialmente à cena em que, ao assistir a um episódio de Star Trek na TV, Paulo Coelho tem um estalo ao ouvir uma fala de Spock, uma dessas frases-feitas que passam por filosofia profunda.
Aí é que está. Se Paulo Coelho tem uma característica central, que unifica suas muitas vidas, a meu ver é esta: a de servir como um liquidificador de referências, de Shakespeare aos quadrinhos, das religiões antigas à cultura pop. Ele soube como poucos diluir tudo isso em narrativas e mensagens acessíveis e (para muitos) agradáveis, numa espécie de autoajuda espiritual prêt-à-porter que o transformou numa das figuras mais conhecidas e bem-sucedidas da literatura mundial.
O ator Julio Andrade usando maquiagem pesada no papel de Paulo Coelho nos dias de hoje
Uma última palavra sobre os atores que encarnam o biografado: o novato Ravel, irmão de Julio Andrade, sustenta muito bem o problemático Paulo Coelho adolescente, às turras com o pai (Enrique Diaz, sempre ótimo). Julio Andrade, que foi o Gonzaguinha de Gonzaga – De pai para filho, também molda com a competência habitual o personagem adulto, antes da explosão da fama. Mas, ao representar, sob uma máscara de maquiagem, o Paulo Coelho atual, sexagenário, ele parece um tanto mumificado, o que acentua a artificialidade da redenção/consagração final.