Natal em poesia: sinos, silêncio e solidão

Literatura

22.12.15

Conhecido por ser o poeta da “palavra enxuta”, Manuel Bandeira derramava-se quando realmente gostava de um de seus pares. Entusiasmava-se, sobretudo, se o gosto viesse de uma descoberta feita por ele mesmo, como aconteceu com o cearense José Albano, que, vivendo entre os séculos 19 e 20, fez poesia como se fosse contemporâneo de Camões. Muitos escreveram sobre esse poeta extravagante, que cantou assim na Ode à língua portuguesa: “Língua minha dulcíssona e canora,/ Em que mel com aroma se mistura”.

Não sem razão, houve quem o chamasse de “esquisita flor do passado”, enquanto o severo crítico João Ribeiro, apreciador de sua poesia, declarou que Albano era um “pedante de marca”. Mas Bandeira, gostando dos versos, foi mais dinâmico: tratou de organizar, revisar e prefaciar a reedição das Rimas, em 1948, coletando poemas publicados esparsamente em 1912 e mais o soneto “Triunfo”, na sua opinião, obra-prima, cujos tercetos finais  o encantavam particularmente:

Ah não me deixes nunca andar sozinho
Mas dá-me sempre, em aflição tamanha,
Um pouco de consolo e de carinho.

Ó meu sonho de amor, tu me acompanha
Por esta vida, às vezes tão escura,
Por esta vida, às vezes tão estranha.

Sem guerê-guerê, para usar expressão de seu gosto, Bandeira, particularizando esse soneto, resumiu: “José de Abreu Albano foi um altíssimo poeta, escreveu um dos mais belos sonetos da língua e de todas as línguas, viveu perfeitamente feliz dentro do seu sonho, na loucura que Deus lhe deu e na miséria que foi a criação de sua própria mão perdulária”.

Era assim Manuel Bandeira quando gostava. E foi com fervor que escreveu sobre o poeta pernambucano Carlos Pena Filho, depois de ler o Livro geral, de que consta o “Poema de Natal”:

– Sino, claro sino,
Tocas para quem?

– Para o Deus menino
que de longe vem

– Pois se o encontrares
traze-o ao meu amor.

– E que lhe ofereces, velho pecador?

– Minha fé cansada,
meu vinho, meu pão
meu silêncio limpo
minha solidão.

Livro geral saiu em 1959 e, em 22 de janeiro do ano seguinte, Bandeira escreveu ao autor, comentando alguns poemas, entre os quais o “Poema de Natal”. Conta ele na crônica “Carta devolvida” que, erradamente informado ser Pena filho promotor público,  endereçou a carta ao Palácio da Justiça, Recife. Mas aconteceu que em junho de 1960, poucos meses depois de Bandeira postar o envelope, Pena Filho morreu num acidente de carro, ocasião em que o conterrâneo escreveu: “Uma estrela apagou-se agora, e é todo o Brasil, não somente Pernambuco, que vê o seu céu desfalcado”.

Sentiu a perda poética, mas só quando, em 1961, com o carimbo “Desconhecido no local indicado”, recebeu a devolução da carta que mandara havia um ano, se deu conta da perda humana: Pena Filho nunca pôde ler as palavras de admiração sobre  Livro geral, em que o remetente identificava ecos de sua própria poesia. Delicadamente, observava na carta que nunca chegou às mãos do destinatário: “Não é verdade que a nossa melhor glória são esses resíduos que deixamos na memória dos outros?”

Encontrou na poética de Pena Filho alguns dos temas que sempre lhe foram caros: sinos, silêncio e solidão: “A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos/ Do meu Natal sem sinos?” – interrogava Bandeira em “Natal sem sinos”.

Além disso, poderá ter identificado, no “Poema de Natal”, reflexos de sua antológica “Balada de Santa Maria Egipcíaca”, em que a santa oferece ao barqueiro “a santidade da sua nudez” para que ele a transporte ao outro lado do Rio. Assim como na balada de Bandeira, há, neste poema de Pena Filho, uma oferta física e moral: naquela, o corpo, a santidade e a nudez; neste, o vinho, o pão, o silêncio limpo, a solidão.  

– E que lhe ofereces, velho pecador?
– Minha fé cansada,
meu vinho, meu pão
meu silêncio limpo
minha solidão

Ora, entre 1946 e 1947, quando Hildebrando de Góis foi prefeito do Rio de Janeiro, Bandeira, então morador de um apartamento modesto na av. Beira-Mar, escreveu “Carta-poema”, pedindo ao político que mandasse calçar o pátio ao lado do prédio onde morava. Faz o pedido lembrando que é                      

Um poeta sexagenário,
Que não tem outra aspiração
Senão viver de seu salário
Na sua limpa solidão

A partir daí, muitos passaram a identificá-lo como o poeta da “limpa solidão”, termos que, como se vê, repercutem nos versos de Pena Filho. Conta a biografia deste pernambucano que ele foi casado e teve uma filha que lhe deu três netos. Quanto a Bandeira,  solteiro durante toda a vida, morou sempre sozinho, não teve filhos, mas nunca deixou de amar. E muito. Fez um tremendo charme com a “limpa solidão”. Mas isso é história para depois do Natal.    

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