No alto da colina, dentro dos homens

Literatura

19.08.14

A guerra deixou Rena sozinha numa cabana no topo de uma das colinas irmãs, um dos assentamentos israelenses na Cisjordânia com o território palestino logo abaixo. Pior: seu marido, Hanan Cohen, depois de partir em um dia de 1973, não voltou mais. Morreu em combate, deixando-a com a missão de cuidar dos três filhos. Rena não desiste de continuar ali, crente de que aquela terra é a prometida por Deus, mesmo que, após as guerras com os árabes, as Intifadas palestinas também cobrem um preço à sua família.

O escritor americano Nathan Englander (Divulgação)

Por acaso, comecei a ler a história de Rena e sua família na mesma semana em que se iniciava o mais recente conflito guerra entre israelenses e palestinos. Todos são personagens de “Colinas irmãs”, o segundo conto de Do que a gente fala quando fala de Anne Frank, livro de Nathan Englander lançado no Brasil no ano passado. A ficção é capaz de humanizar um lado da guerra que é muito discutido, porém pouco mostrado: quem são esses colonos que se tornaram um dos mais complicados obstáculos para a paz no Oriente Médio.

Talvez a imagem mais difícil de atrair simpatia na guerra recente seja a de israelenses assistindo do alto de uma colina, sentados em cadeiras, como a um espetáculo, ao bombardeio em Gaza. Em meio a milhares de mortes, é confuso compreender suas razões. Mas Rena tem – ou acredita que tem – um motivo para estar lá. Uma razão bem humana: está lá porque tem de estar lá. Há um momento sutil na história em que outra personagem, Yehudit, questiona esse dever. Deus a fez se afastar da família e ainda mandou seu marido para a guerra, deixando-a com um bebê doente. Isso “depois de ter sacrificado minha felicidade pelo bem de Israel”.

Em um grande momento da história, os argumentos dos colonos e também dos palestinos, vivendo logo abaixo da colina, se chocam quando ela resolve botar abaixo uma oliveira. O ato leva um adolescente palestino a subir a colina e confrontá-la, apesar de ela estar armada. O diálogo entre os dois, cada um certo de que aquela terra é sua, podia constar em qualquer debate sobre a paz na região hoje em dia. 

Nathan Englander, apesar de retratar Israel e israelenses, é americano, e um renovador da narrativa contemporânea. Às vezes é comparado com Philip Roth, mas seus contos têm mesmo um pé na grande ficção russa, como alguns de Para alívio dos impulsos insuportáveis, outro livro lançado no Brasil, e também em autores pós-pós-modernistas, como David Foster Wallace.

A realidade de Israel atual também está presente na ficção do israelense Etgar Keret. Maior nome da literatura moderna do país, só agora está começando a ficar conhecido no Brasil – seus livros foram publicados primeiro em outros 34 países. Entre os admiradores, conta com nomes como Salman Rushdie e Jonathan Safran Foer. De repente, uma batida na porta saiu pela Rocco às vésperas da participação de Keret na Flip, no início do mês.

O israelense Etgar Keret (Divulgação)

Ainda que não de maneira tão explícita, sua obra reflete um certo desencanto, dosado com surrealismo, do autor com o próprio país. Ele já declarou se sentir mais judeu do que israelense e é um crítico da política dos governos com relação aos palestinos. A política, todavia, não aparece abertamente em De repente, uma batida na porta como ocorre na ficção de Englander. Seus personagens estão mais absorvidos em pequenos dramas humanos do que políticos: um escritor com um bloqueio criativo é obrigado por estranhos a contar uma história, um pedido de hambúrguer sem queijo leva a acontecimentos trágicos, um outro homem vive sendo confundido com outra pessoa.

É possível, no entanto, apontar uma intenção subjacente em “Terra da mentira”, conto brilhante em que o narrador enumera todas as mentiras que contou na vida e de repente se vê obrigado a enfrentá-las. Deduzir que a mentira tem consequências é um raciocínio fácil. Mais interessante é confrontar esse raciocínio com a história de um país obrigado a viver uma só narrativa da guerra como a única verdade possível. 

Numa entrevista antes de vir ao Brasil, o autor disse que o judaísmo é povoado de heróis que duvidam de tudo. O surrealismo de Keret dialoga com essa tradição. É o que faz De repente… ser dotado de certa ideologia. Em um mundo com tantas certezas e verdades, nada mais político do que afirmar que as coisas talvez não sejam o que parecem ser.

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