Da extensa e muito variada filmografia de Hugo Carvana (1937-2014) o que talvez logo desperta na memória do espectador é o personagem que ele criou e desenvolveu em seus primeiros filmes que dirigiu, o Secundino Meireles de Vai trabalhar vagabundo (1973) e de Se segura, malandro! (1978), transformado no Zeca de Bar esperança (1983), e retornado ao Secundino em Vai trabalhar vagabundo 2 – A volta (1991). Trata-se de um personagem que começou a ser esboçado na breve cena de Macunaíma (de Joaquim Pedro de Andrade, 1969) em que Carvana surge de repente para vender ao herói um pato que descome dinheiro.
Hugo Carvana. Foto de José Medeiros, 1973.
Ele já havia, então, feito personagens cômicos (com Luiz de Barros, Trabalhou vem Genival, 1955, e Tudo é música, 1957, e com Carlos Hugo Christensen, Esse Rio que eu amo, 1962) e dramáticos (com Ruy Guerra, o soldado José de Os fuzis, em 1964, com Leon Hirszman em A falecida, 1965, com Glauber Rocha, o Álvaro de Terra em Transe, em 1967) e estava, quase ao mesmo tempo, interpretando o Santamaria (de O anjo nasceu de Júlio Bressane, 1969), ferido, caído a um canto, quase sem poder se mover, quando, na breve cena do malandro vendedor de pato, começou a esboçar o malandro que na primeira imagem de Vai trabalhar vagabundo sai da cadeia. No Lourival de Quando o carnaval chegar (de Carlos Diegues, 1972), alguns outros traços retocam a figura do futuro malandro que sai da cadeia bem no instante em que a ditadura militar fechava o país num cárcere. Sai como quem dança, caminha como numa espécie de bailado minimalista, todo o tempo decompondo a figura em pequenos movimentos num espaço mínimo – ligeiro desengonçar do corpo, pequenos gestos com as mãos, suave balançar da cabeça.
Logo depois, antes da segunda aventura, Se segura, malandro! (1978), emprestou seu personagem a Paulo César Saraceni para a cena inicial de Amor carnaval e sonhos (1973), a Arnaldo Jabor para compor o comissário de Toda nudez será castigada (1973) e a Nelson Pereira dos Santos para dar vida ao Fausto Pena de Tenda dos milagres (1977). Bem mais tarde, emprestou a cabeça de Secundino, solta, tagarela, deitada sobre a areia da praia, para o curta-metragem O cabeça de Copacabana de Rosane Svartman (2000).
Carvana vestido de Super-Homem ao lado de Millôr em foto de David Drew Zingg (sem data).
Ator em pouco mais de cem filmes para cinema e televisão, diretor de nove longa-metragens para cinema, Carvana fez muito mais que a invenção de Secundino Meireles. Como ator, em passagens rápidas e marcantes, compôs um sem número de personagens dramático em filmes como Terra em transe e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (ambos de Glauber Rocha, 1967 o primeiro, 1969, o segundo), Mar de rosas (de Ana Carolina Teixeira Soares, 1978), Avaeté, semente de vingança (de Zelito Viana, 1985) ou na série de televisão As noivas de Copacabana de Mauro, Maurício e Roberto Farias (1992).
Como diretor, realizou ainda dois filmes de humor delicado e simples, Bar esperança (1983) e O homem nu (1997). Na cena final deste, no papel de motorista de táxi, conduz o protagonista da história, o Silvio Proença interpretado por Claudio Marzo. Ao volante, conversa enquanto dirige, fala mais do que dirige, fala sem esperar resposta, monólogo solto, alegre, quase ingênuo, otimista, sobre as muitas voltas que o mundo dá, sobre o prazer de um dia de sol aberto no Rio de Janeiro depois de uma noite de chuva. Conversa igual a qualquer outra, de passagem, na rua, num bar ou num táxi, dia de sol, Rio de Janeiro. Conversa que começa no meio e acaba no meio, deixada em aberto. Nela, uma perfeita síntese do que Carvana se propôs a fazer, como ator e diretor.