Quinta Avenida, cinco da matina
https://www.youtube.com/watch?v=yDddAKtELZ8
A cena é bem conhecida. Quinta Avenida deserta no lusco-fusco terrível em que se dissolve a boemia. Um táxi solitário, faróis ainda acesos, para e dele desce a mulher esguia e linda, pretinho pouco básico, luvas da mesma cor, óculos escuros e um saco de papel na mão. Diante da Tiffany’s – estamos na esquina com rua 57 -, ela tira da embalagem um copo de café e um croissant e come enquanto contempla as vitrines impossíveis da joalheria. Assim começa Bonequinha de luxo e, segundo um livrinho delicioso, um novo capítulo da mulher em Hollywood.
Fifth Avenue, 5 a.m. – Audrey Hepburn, Breakfast at Tiffanys’, and the Dawn of the Modern Woman é um título proporcionalmente maior do que as 256 páginas do livro (na edição americana; a brasileira sai ainda este semestre pela Zahar) e tem jeitão de tese feminista americana. Mas de acadêmico Sam Wasson não tem nada. Ele é, sim, um jornalista esperto que conta, com os detalhes certos, o nascimento de um clássico da comédia romântica e do mito Audrey Hepburn.
Atriz de alcance limitado, Audrey saiu de um semianonimato para o estrelato de Gigi depois de indicada por Colette, a própria, que a viu filmando em Mônaco em 1951. Nos dez anos seguintes, até filmar Bonequinha de luxo, nada indicava que a menina linda de A princesa e o plebeu, Sabrina e Cindrela em Paris fosse encarnar uma personagem do ácido Truman Capote, àquela altura o darling de socialites e intelecas novaiorquinos. Ainda mais sendo a personagem uma garota de propaganda avoada.
Mas o produtores Marty Jurow e Richard Shepherd acharam muito óbvio que a gostosa de todas as gostosas, Marylin Monroe, emprestasse seu corpão à Holly Golightly. Tinham toda razão. Pela primeira vez uma estrelinha poderia conciliar sexo e simpatia, pois, no país de Doris Day, quem quisesse transar tinha que casar. E não deixar explícito que tinha interesse pelo esporte. Faltava convencer a doce Audrey, reticente e moralista, casada com o santarrão Mel Ferrer, que, para completar, tinha ciúme do sucesso da adorada esposa.
George Axelrod, o roteirista, deu uma arredondada nas arestas morais e existenciais da novela de Truman Capote – com previsíveis reações do escritor, que desde sempre se achou e, apesar de amar Audrey, odiava o filme. O resultado é que, no filme, Holly diz ganhar 50 dólares “para ir ao banheiro” e as senhoras americanas nem ligaram o nome à pessoa, ou melhor, o pagamento à prática. Com a ajuda pouco feliz de Blake Edwards, Axelrod também carregou nas tintas do vizinho japonês como um esterótipo intolerável caricaturado por Mickey Rooney – para a ofensa da comunidade nipônica e de Akira Kurosawa, que reclamou pessoalmente da falta de gosto.
http://www.youtube.com/watch?v=BOByH_iOn88
A música é um capítulo à parte – e vale cada dólar (não há edição nacional) a trilha de Henry Mancini. Convidado por Edwards, o maestro achou que aquela era uma grande chance, mas não lhe vinha na cabeça uma canção que Audrey, com voz quase nula, pudesse cantar a dado momento. A angústia foi recompensada com Moon river, letrada por Johnny Mercer. Ao ver o primeiro corte com o elenco, um diretor do estúdio vaticinou: “Vamos cortar essa música insuportável”. “Só sobre o meu cadáver”, disse Audrey. O resto é história e, ouvida no filme, Moon river sai da vala comum do musak para mostrar-se o que é: uma grande, excepcional canção romântica, perfeita. (Paro por aqui, pois o disco, como descobri há pouco tempo, é uma sucessão de pequenas genialidades.)
Mas uma maravilha é descobrir que, de Bonequinha de luxo, saiu Um convidado bem trapalhão, que, Pink panthers à parte, ainda é para mim a obra-prima de Blake Edwards. A ideia de uma festa em que acontece tudo vem da longa cena em que dezenas de pessoas se espremem numa festinha no apartamento de Holly. Blake Edwards exigiu que o estúdio contratasse apenas atores (e não extras), que ficaram improvisando num cenário minúsculo durante uma semana. No último dia, trocou-se chá por champanhe para animar a filmagem. Dentre outras coisas, há um chapéu em chamas, casais se agarrando em todo lugar possível e imaginável e uma senhora que gargalha se olhando num espelho. É uma maravilha, quase um filme dentro do filme – tanto que o diretor resolver esticar a ideia com o louco Peter Sellers no comando.
Leiam o livro, revejam o filme. Nessa ordem. Ainda há muito, muito o que rir e se emocionar, mesmo sendo George Peppard o galã.
A festa