Raphael Domingues na década de 1940 | Obra sem título
Almir Mavignier teve um papel decisivo no processo de trabalho de Raphael Domingues, desenhista genial cujos trabalhos podem ser vistos na exposição Raphael e Emygdio: dois modernos no Engenho de Dentro, em cartaz no Instituto Moreira Salles de São Paulo, entre os dias 10 de abril e 7 de julho. Mavignier, mais conhecido por seu trabalho como pintor e artista gráfico ligado ao concretismo, foi o primeiro monitor do ateliê de artes criado pela Dra. Nise da Silveira, em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro carioca do Engenho de Dentro.
Raphael, diagnosticado como um caso grave de esquizofrenia, frequentou o ateliê da década de 1940 até seu falecimento, em 1979, mas foi nos anos em que Mavignier o assistiu, entre 1946 e 1951, que ele realizou o melhor de sua produção. O monitor, então com 21 anos, soube como ninguém incentivar Raphael a olhar para as coisas e a estabelecer um contato intenso, ainda que efêmero, com o mundo através do desenho. Ele arrumava naturezas-mortas para Raphael desenhar e pedia-lhe para retratar as pessoas à sua volta: Abraham Palatnik, Ivan Serpa, Mário Pedrosa e Murilo Mendes, que costumavam visitar o ateliê, foram alguns de seus modelos. Muitas vezes convidados por Mavignier, críticos e artistas das mais diversas áreas formavam uma espécie de plateia de especialistas interessada em discutir a qualidade artística do que era produzido ali. É bem provável que essas presenças ajudassem a criar um ambiente de interesse pelo mundo da arte e, consequentemente, de estímulo à produção dos internos.
Nos dias 16 e 17 de abril de 2012, em meio à pesquisa para a organização de Raphael e Emygdio: dois modernos no Engenho de Dentro (exibida no ano passado no IMS-RJ), Almir Mavignier, que vive em Hamburgo desde 1965, respondeu por email a algumas de minhas dúvidas sobre sua relação com Raphael. Como bom discípulo da Bauhaus (ele estudou na Escola Superior da Forma, em Ulm, entre 1953 e 1958), o artista faz questão de escrever apenas com minúsculas.
Sem título [retrato de Murilo Mendes], 1950
Dizem que a doença de Raphael era gravíssima e que ele era praticamente inacessível. Ele tinha momentos de lucidez? Você acha que seus desenhos figurativos eram fruto de seus raros momentos de contato com a realidade?
raphael era fortemente “dissociado”, não concatenava palavras em frases coerentes. as palavras porém eram “belíssimas” e vinham de seu mundo para mim maravilhoso e trágico. ele era capaz de criticar mário pedrosa sentado erradamente:
– olha o pezinho na cadeira!
mario se aprumou e ficou vermelho…
o gênio de raphael se manifestava quando ele dominava a dissociação para associar: observando desenhando e interpretando a natureza.
nos “treinos” de desenho, não lhe dizia faça isso ou aquilo. uma vez apenas segurei uma folha da planta e disse “olha que bonita!”
na mesma obra desenhou a minha mão – arrumando as folhas da planta.
ele desenhava rapidamente.
no mesmo desenho porém há uma construção estranha à natureza morta sobre a mesa:
ele desenhou a caixa elétrica que estava na parede!
nise da silveira dizia:
“esquizofrenia é a falta de amor”.
O que era a experiência do desenho para Raphael?
não sei.
acho porém que ele percebia a nossa reação ao vê-lo desenhar: f a s c i n a ç ã o, espanto e medo de vê-lo destruir.
artista necessita aplauso.
Durante a década de 1920, Raphael estudou desenho e chegou a trabalhar como ilustrador em agências de propaganda. Li num prontuário que, segundo sua mãe, antes de a doença se manifestar, Raphael tinha o desejo de estudar na Escola Nacional de Belas Artes. Você acha que ele tinha alguma espécie de ambição artística? Ele sabia do interesse que seus desenhos despertavam?
raphael me parecia “desligado” de tudo. ambição e vaidade não perteciam ao seu mundo.
Você se lembra se Raphael começou a desenhar figuras com o pincel grosso ou com a caneta nanquim? Ele escolhia qual instrumento utilizaria para desenhar? Ele usava o pincel e a caneta concomitantemente?
ele não escolhia. eu dava para ele.
ele descobriu uma técnica:
molhava o pincel uma vez só e ia gastando a tinta até o fim.
em alguns desenhos com pincel você pode verificar hoje onde ele começou e acabou.
Você utilizava os conhecimentos técnicos e estéticos adquiridos no ateliê de Arpad Szenes e de Axl Leskoschek em seu trabalho com o grupo do Engenho de Dentro?
não, impossivel. o ateliê não era uma escola de arte. fornecia água para a aquarela, terebentina para óleo e sabão para lavar os pinceis, diariamente.
era o mínimo.
não dava revistas sobre arte.
De que maneira você utilizava seu conhecimento sobre arte no contato com Raphael?
de maneira nenhuma.
raphael não acabava. ele continuava… mesmo encobrindo e destruindo.
pedia-lhe acabar quando ele quisesse. mesmo sem perguntar se ele me compreendia, ele “aprendeu” a jogar o papel no ar para mostrar que tinha terminado.
Alguns estudiosos acreditam que o contato de Ivan Serpa e Abraham Palatinik com os artistas do Engenho de Dentro teria influenciado os rumos da arte abstrata e concreta que surgia no Rio de Janeiro no fim dos anos 1940. Sempre tenho dúvidas sobre essa afirmação. Nos depoimentos desses artistas, assim como de Geraldo de Barros, que também frequentava o ateliê, percebo uma grande admiração pelos internos do Engenho de Dentro e uma espécie de espanto e comoção por presenciarem a realização daquelas obras feitas por indivíduos com tantas dificuldades e limitações. No entanto, não vejo uma relação direta entre as obras dos artistas concretos e a produção do Engenho de Dentro. Por outro lado, tenho a impressão de que Raphael tinha um grande domínio sobre o espaço e, consequentemente, muita clareza e segurança na distribuição das formas no plano bidimensional. Você acha que isso foi importante de alguma maneira para a depuração da forma no seu trabalho e de seus colegas como Palatnik, Ivan Serpa e Geraldo de Barros?
houve o acaso da admiração dos concretos pelas obras.
a referida afirmação é falsa.
os rumos da arte abstrata e concreta que surgiu no rio de janeiro nos fins dos anos de 1940 teve início no apartamento de mário pedrosa.
mário escrevia sua tese sobre “a influência da forma afetiva sobre a obra de arte” e fazia a leitura de trechos do seu trabalho para abraham palatnik, ivan serpa e almir mavignier.
para mim, pessoalmente, impressionou uma experiência com uma máscara africana que os cientistas da gestalt fizeram com animais. sempre que eles mostravam a máscara, havia uma reação de terror dos animais.
os cientistas chegaram à conclusão de que era o caráter formal da máscara que aterrorizava e não a sua associação com experiência anterior, porque havia animais nascidos alí e não em florestas selvagens.
foi para nós a prova da força do caráter da forma era maior do que o seu poder associativo.
terminei de pintar naturalismo.
mavignier, serpa e palatnik passaram a denominar suas obras de “formas”.
Na época do ateliê, você conhecia bem os desenhos de Matisse e Klee? Identificava semelhanças entre os desenhos de Raphael e desses artistas?
conhecia mal.
klee melhor do que matisse.
Como era a presença de Nise da Silveira no ateliê de artes durante esses primeiros anos?
nise da silveira era chefe do serviço de assistência social e muito ocupada com vários deveres.
aparecia regularmente, não diariamente.
dava liberdade.
<br />
Em abril de 2013, procurado para autorizar a publicação dessa entrevista, Almir Mavignier pediu acrescentar um tópico, desta vez usando também maiúsculas.
<br />
uma outra resposta para uma pergunta que não foi feita:
o MISTÉRIO da qualidade genial de raphael estava naqueles que o admiravam ou admiram: NELES MESMOS, isto é: ELES viram o que conheciam.
e amavam: MATISSE, PICASSO etc… raphael NÃO. ele nunca viu e certamente não GOSTARIA daqueles de que nós gostamos.
o trágico em raphael é que ELE COMO PERSONALIDADE CONSCIENTE não existiu. seus desenhos, SIM.
<br />
[Obras e fotografias aqui reproduzidas pertencem ao acervo do Museu de Imagens do Inconsciente].
<br />
* Heloisa Espada é coordenadora de Artes do IMS.