Por muito tempo acreditei que futebol e literatura de ficção não formavam uma dupla entrosada. Não pelos motivos que, um dia, disseram que Pelé e Tostão não podiam jogar juntos: tinham estilos parecidos. Literatura de ficção e futebol até que têm “estilos” mais do que distintos. Acontece que as tentativas que se repetiam, em alguns contos e poucos romances, para aproximar as duas linhas me soavam como passes errados ou chutes para fora. Principalmente porque os escritores, por mais craques que fossem, não conseguiam criar com suas comédias, dramas ou tragédias algo que sequer chegasse perto do que se passa de verdade no fascinante teatro do futebol. Isso porque, como me atrevi a dizer em palestra na ABL, “nenhuma invenção, nenhuma narrativa ficcional, nada do que se tem criado, carrega em si a dimensão humana das histórias reais vividas dentro e fora dos estádios”. Sete anos depois, reconheço que furei feio.
Continuo achando que histórias sobre futebol, pura e simplesmente, têm poucas chances de vitória. Qual delas poderia igualar-se ao drama ou à tragédia de um Heleno, um Garrincha, um Veludo, um Floriano? Mas… e se o futebol, com toda a sua riqueza de emoções, for apenas a cena, o mundo pelo qual transitam personagens não necessariamente bons de bola? E se as histórias vividas por esses personagens aproveitarem, e transcenderem, toda a magia que o futebol contém. Lembro-me de uma novela aparentemente despretensiosa, de Luis Fernando Verissimo, dirigida ao público infantojuvenil. Título: O cachorro que jogava na ponta esquerda. Nela, um simples desafio de rua entre turmas rivais é o bastante para mostrar que, no futebol, cabem, para lembrar Paulo Mendes Campos, “todos os ramos da grande árvore psíquica”. E que é possível criar excelente ficção jogando com os valores, a graça, as manias, as tradições, as lógicas, os absurdos, a imaginação, a arte e as memórias que o futebol planta em cada um de nós.
Outros escritores já tinham me convencido disso, mas todo este longo nariz-de-cera acima é para chegarmos a O drible (Companhia das Letras), romance de Sérgio Rodrigues que me atrevo a rotular como o melhor já escrito sobre futebol em qualquer idioma.
Certo, não é bem um livro sobre futebol, mas, ao mesmo tempo, é. Trata da reaproximação de pai e filho separados por 26 anos de distância, ódios e segredos. O pai, “O leão da crônica esportiva”, é um jornalista que repassa etapas de sua vida associando-as ao futebol, em especial jogos do Brasil em Copas do Mundo e a biografia que escreve sobre um certo Peralvo, craque paranormal que seria “maior que Pelé”, não fosse assassinado pela repressão dos anos de chumbo. O filho, um revisor de livros de autoajuda, não é fã de futebol. Suas memórias remetem à cultura pop do seu tempo, tão distante do pai quanto ele mesmo. Fatos e personagens reais se alternam com os criados pelo autor, ele próprio jornalista esportivo de primeiro time e jovem intelectual em dia com aquela cultura. As memórias de cada um, embora diversas, dão força e coerência à narrativa. Por mais que o velho leão afirme que “… o futebol pode espelhar a vida, mas a recíproca, por razões que ignoramos, não é verdadeira”.
O romance prende o leitor como um match decisivo, sem favoritos e, como tal, sujeito a resultados surpreendentes. As metáforas, a maior parte delas saídas do futebol, entram em campo a cada página. O histórico drible sem bola de Pelé em Mazurkiewicz (aquele que o locutor Clovis Filho, parafraseando Manuel Bandeira, definiu como “o gol que deveria ter sido e não foi”) é uma das fixações do velho cronista: “Pelé desafiou Deus e perdeu”. E é no mínimo desafiadora a tese de que Pelé não quis fazer aquele gol, preferindo perdê-lo por pouco para ficar na história marcado pela cicatriz desse por pouco, “sabendo que ela queimaria mais que o gozo da realização”. Um lance eterno que, vai-se saber, tem tudo a ver com a densa história de pai e filho. Os segredos? Como acaba? Os porquês? Qual o placar final deste envolvente romance? Que cada um confira. Matches decisivos têm de ser vistos do primeiro ao último minuto.
* João Máximo é jornalista, autor de Gigantes do futebol brasileiro (com Marcos de Castro), Maracanã – Meio século de paixão, Noel Rosa – Uma biografia e outros livros.