Agora que um único filme norte-americano (Vingadores: Era de Ultron) ocupa quase metade das salas exibidoras do Brasil talvez seja um bom momento para revisitar criticamente o movimento que buscou de maneira mais contínua e consequente “descolonizar” nossa produção audiovisual: o Cinema Novo, surgido na virada dos anos 1950 para os 60.
Para propiciar essa imersão, começa na próxima quarta-feira (29 de abril) na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, uma grande retrospectiva do Cinema Novo, exibindo até meados de junho um total de 53 filmes (35 longas e 18 curtas). Serão exibidas cópias restauradas de raridades como Esse mundo é meu (1964), de Sérgio Ricardo, Câncer (1968/72), de Glauber Rocha, e Brasil ano 2000 (1968), de Walter Lima Jr., ao lado de clássicos incontornáveis do movimento, como Os fuzis, Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol. Aqui, como aperitivo, a sequência de abertura de Brasil ano 2000:
É uma boa oportunidade para separar o trigo do joio e fazer uma avaliação mais equilibrada da real importância dessa produção, agora que parece ter baixado a poeira das disputas estéticas, ideológicas e pessoais envolvendo os cinemanovistas e seus adversários.
Unidade e diversidade
Primeiro, é preciso reconhecer que não existe uma uniformidade, e nem mesmo uma homogeneidade, na produção do grupo. Entre o barroco visionário de um Glauber, o “realismo dialético” de um Leon Hirszman, o intimismo trágico de um Paulo César Saraceni e o lirismo de um David Neves ou de um Domingos Oliveira há enormes distâncias de estilo, tom e humor.
O cineasta Glauber Rocha, ícone do Cinema Novo
O Cinema Novo, por um lado, faz parte de toda uma tendência internacional de renovação, simbolizada sobretudo pela Nouvelle Vague francesa, em que o uso de equipamentos mais leves, as filmagens em locações e a subversão de certas convenções narrativas contrapunham-se ao peso das grandes produções dos estúdios e à hegemonia estética e ideológica do cinema norte-americano.
No front interno, os cinemanovistas reagiam contra dois modelos de cinema já então falidos ou desgastados: as grandes produções da Vera Cruz, vistas por eles como imitações canhestras do cinemão americano e europeu, e as chanchadas, desdenhadas como entretenimento popularesco e alienante.
Urgência política
Esses inimigos comuns uniam a turma do Cinema Novo, que pretendia fazer um cinema descolonizado, engajado na denúncia e no combate às mazelas sociais do país. Com esse ideário e essa motivação, não foram poucas as vezes em que a produção do grupo resvalou para o didatismo, quando não para o panfletarismo, a par de um certo descuido da forma e da qualidade técnica. A urgência política justificava tudo, ou quase tudo.
O diretor Ivan Cardoso, criador do “terrir” e grande admirador das chanchadas brasileiras e dos filmes B americanos, costuma dizer, com evidente exagero, que os cinemanovistas, com raras exceções, não eram cineastas de verdade. “Eram advogados, jornalistas, sociólogos, que não sabiam nem segurar uma câmera Kodak.” A piada maldosa talvez tenha um fundo de verdade.
Rancores e ressentimentos sempre vêm à tona quando se fala no assunto. Organizado como grupo, apesar das diferenças internas, o Cinema Novo excluiu e discriminou, quando não hostilizou, cineastas importantes como Walter Hugo Khouri e Luís Sérgio Person, para não falar de seu grande desafeto Anselmo Duarte.
A questão é que, a certa altura, o próprio Cinema Novo tornou-se, por assim dizer, o establishment, sobretudo mediante a “tomada de poder” na Embrafilme. Contra esse cinema institucionalizado, tornado mainstream, rebelou-se a geração chamada pejorativamente de “marginal” ou “udigrudi”, ou seja, o cinema de invenção de Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Andrea Tonacci etc. O próprio Ivan Cardoso faz parte de uma espécie de “segunda dentição” desse cinema.
Essa nova geração desintegrou o discurso político normativo cinemanovista e levou adiante a experimentação estética, promovendo uma reabilitação da chanchada e buscando novas formas de interação com a cultura popular.
Sinais de inquietação
Mas nada é estanque quando se trata de produção artística. Como a mostra da Cinemateca permitirá verificar, no próprio seio do Cinema Novo surgiram, no final dos anos 1960, sinais de inquietação e de desejo de superação dos limites do movimento. Exemplos disso são Câncer, de Glauber, com seus pontos de contato com o underground, e, no outro extremo, Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, em sua busca de um elo entre a chanchada, o modernismo paulista de 22 e o tropicalismo então em efervescência. Aqui, uma sequência impagável do filme:
Grosso modo, porém, o Cinema Novo se institucionalizou, se acomodou, se aburguesou. Não por acaso, um eterno rebelde como Glauber isolou-se de seus antigos companheiros, ou foi isolado por eles.
Dessa história de amores e ódios, de farpas e afetos, restam os filmes. Alguns envelheceram mal, outros – como Os cafajestes, O padre e a moça, Terra em transe e São Bernardo, por exemplo – seguem vivos, dolorosos, cortantes. Outros ainda, como Gimba, o presidente dos valentes (Flavio Rangel, 1963) e O grito da terra (Olney São Paulo, 1964), merecem ser conhecidos, no mínimo por curiosidade e interesse histórico. A mostra da Cinemateca, em suma, permitirá averiguar o que ainda há de novo no Cinema Novo.