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Oi, coração.
Repito que estou triste com o encerramento de nossas dezesseis cartas encomendadas pelo Flávio. A correspondência pública que começou com uma forte desavença privada (não conto qual foi, mas gosto de atiçar a curiosidade do leitor) parece que nos tornou mais amigos, e nossa amizade, mais amorosa. Deve ser este o sentido das cerimônias de casamento: ao convocar testemunhas para um compromisso amoroso particular, os noivos talvez sintam-se mais ligados um ao outro – por tempo indeterminado, sabemos. Bom é saber que me despeço do blog, mas não de você: minha próxima ida mensal ao Rio é no começo de julho, e já me vejo aí, sábado à noite, para mais uma conversa (quase) sem fim. A sala “de visitas” (nomenclatura antiquada esta, não?) da casa da Urca, onde passamos algumas horas literalmente disputando a palavra, já faz parte da mitologia de minhas memórias. A configuração de que mais gosto é esta: você, a Cri e eu, sem mais visitas a não ser a passagem cada vez mais rápida do Carlos, sempre gentil comigo, mas obviamente desinteressado da nossa conversa. Gostaria de algum dia amanhecer conversando, sem ter visto a noite passar. Vi ontem, e recomendo, o último filme do Toni Venturi, Estamos juntos, em que uma jovem médica, que está sempre mal-humorada, não reconhece o valor dos amigos que tem. Não conto qual o acontecimento que muda a disposição dela, mas o filme me fez pensar que apreciamos melhor os amigos quando ficamos mais velhos e o convívio prolongado já compôs uma movimentada rapsódia.
Duas coisas sobre a sua carta: o poema “Escrevia a um palmo de si…”, conheço mais intimamente do que muitos outros que você mandou nesse período. Gosto dele demais, li antecipando o que viria, com grande intimidade – de que livro é? Do Raro mar?
A outra coisa, sobre o MST: sei que você escreveu de boa-fé sobre “entrega e dedicação admiráveis”, mas quero muito, e com muita honestidade, relativizar o valor dessas palavras. Não estou lá, na beiradinha daquele mar de gente, a oferecer a beiradinha de meu tempo livre, movida por nenhum sentimento admirável, daqueles que se costuma chamar de bondade. Comecei o trabalho de atendimento na ENFF a pedido deles, é verdade, mas estava doida de vontade que eles me pedissem isso. Minha vida estava estável demais, em 2006: profissão estabelecida, filhos mais ou menos criados, namorado distante, mas constante, e tal. Tenho horror a tal estabilidade, embora aprecie muito as pequenas rotinas que costuram um dia no outro – “com seu colar de minutos…” etc. Já a estabilidade, sei lá: parece que apaga o sentido da diferença entre os momentos da vida, empastela os anos e, acima de tudo no meu caso, cria uma espécie de zona de conforto que embota a sensibilidade. Gosto de ter os nervos em estado de alerta, com períodos de tranquilidade conquistada a cada dia. Pela mesma razão, dou grande valor ao medo, mas não vou repetir o elogio do medo que fiz em uma das primeiras cartas.
O fato é que naquela época eu queria me desestabilizar um pouco, e o pessoal da Escola Nacional me ofereceu esse presente. Tão logo me perguntaram como a psicanálise poderia ajudá-los, eu comecei a atender os trabalhadores da ENFF e os estudantes de passagem por lá. Foi um espanto e uma alegria, que ainda por cima renovou meu gosto pela psicanálise, um dispositivo cuja potência também não cansa de me surpreender. Lá eu recebo mais do que dou, de verdade. Estou lá porque me revigora, melhora minha psicanálise, me desenvelhece. No momento tento usar o tempo livre para terminar o relato da análise de Josué – nome fictício – sobre o qual já te contei um pouco, e que vai se chamar Porque sou um homem – assim mesmo, como afirmação e não pergunta. Mais não digo aos leitores, por ora, mas a vocês já contei pelo menos a história do título, lembra? Será um livro breve e leve, no qual também incluirei algumas considerações sobre as diferenças subjetivas entre os analisandos da ENFF e os de São Paulo.
Eu adoro os começos. Começos são infinitos. O que se segue a eles já não é: são os dias, as horas, novos compromissos de trabalho, de lazer, de amor, que se instalam na agenda. Mas um começo – como nos poemas que você escreveu quando Carlos nasceu – parece que não vai ter fim. Agora que essa correspondência acaba, o que mais vai começar? Sei que isso é bovarismo, ai de mim. Pois, assim como a pobre Emma, abro as janelas a cada manhã perguntando “o que vai acontecer?”. Sorte que nasci em um século no qual uma mulher como eu, e não como a Bovary, pode fazer acontecer muitas coisas, muitas mais do que um casamento mediano no qual havia que se apostar todas as fichas da existência.
Um p.s., só porque você é carioca: ando comovida com a greve dos bombeiros aí no Rio. Não sei se o pulha do Garotinho está por trás ou não, como afirma o Cabral, mas mal posso crer na insensibilidade do governador ao desqualificar as reivindicações justíssimas por aumento de salário e melhores condições de trabalho destes que são os funcionários públicos mais respeitados do país. E o povo para apoiar os grevistas onde está? Serão só suas famílias a protestar contra os mais de 400 homens presos como “vândalos” por terem ocupado (aprendi no MST a não dizer invasão e sim ocupação) o quartel? Sábado passado eu estava na rua do Carmo, antes de ir para o Santos Dumont, quando fui abordada por um homem de uns 40 anos, muito entristecido mas também bravo, que tentava convencer as pessoas a aderir à pequena multidão reunida em protesto diante da Assembleia legislativa. A injustiça e a falta de reconhecimento do valor de seu trabalho doíam nele, visivelmente. O sentimento de injustiça é uma ferida impossível de cicatrizar.
Termino assim, sem esparadrapo.
Muitos beijos, até julho com certeza.
Assino como você me chama, Ri.
* Na imagem da home que ilustra este post: Isabelle Huppert e Jean-François Balmer em cena de Madame Bovary (1991), de Claude Chabrol