Filmes total ou parcialmente autobiográficos constituem um gênero escorregadio, que pode tanto gerar obras-primas (Amarcord, Fanny e Alexander, Adeus meninos) como reminiscências desinteressantes ou autocomplacentes.
Meu amigo hindu, de Hector Babenco, que abriu anteontem (21 de outubro) a 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, não se enquadra em nenhum dos dois extremos.
Ao contrário das três obras citadas, todas centradas na infância, Meu amigo hindu cola-se à experiência pessoal do cineasta na maturidade, a partir da descoberta e do enfrentamento de um câncer linfático. Pode ser lido, ao menos pelo público brasileiro, como uma espécie de roman à clef, em que parte do interesse consiste em identificar, por trás dos nomes fictícios, quem é tal ou qual personagem. Alguns são óbvios: o médico Drauzio Varella (Reynaldo Gianecchini), a atriz Xuxa Lopes (Maria Fernanda Cândido), além, claro, do próprio Babenco, o protagonista, oculto sob o nome Diego Fairman e encarnado pelo estupendo ator Willem Dafoe.
Língua estrangeira
Ocorre que o filme, embora todo rodado no Brasil com elenco e equipe majoritariamente brasileiros, é falado em inglês. Quer dizer, em vez de dublar Dafoe (ou de escolher um brasileiro ou argentino para o papel), Babenco optou por fazer os atores brasileiros falarem inglês. A decisão indica, decerto, o anseio de atingir o mercado internacional. Mas há uma analogia curiosa entre esse modo de produção que gira em torno do astro central e a própria história narrada, isto é, a biografia de um artista egocêntrico e narcisista.
O fato é que a escolha do idioma, aparentemente secundária, é crucial para o resultado do filme, e vou tentar explicar por quê. Em Meu amigo hindu, Babenco trafega entre a encenação realista e a fantasia, mais ou menos como ocorria em O beijo da mulher aranha, outra história em que o corpo aprisionado resistia ao suplício recorrendo às viagens da imaginação. Mas aqui, a meu ver, a dimensão realista perdeu o frescor e o vigor dos primeiros filmes do cineasta, devido a uma mise-en-scène um tanto rígida, travada, em que cada personagem parece esperar sua deixa para passar a falar e a existir – ou melhor, parece que só existe para dizer sua parte do diálogo. Essa falta de fluência é acentuada pela circunstância de os atores falarem uma língua que não é a sua.
Para o espectador brasileiro, é estranho ouvir aqueles rostos familiares (Selton Mello, Fernanda Cândido, Gianecchini, Barbara Paz) falando inglês. Não é uma questão de competência ou correção: nenhum deles passa vergonha, mas se cria um distanciamento inevitável, um acréscimo de artificialidade. Inversamente, fico curioso em saber como o público de língua inglesa reagirá àquele monte de brasileiros falando seu idioma com sotaque estrangeiro.
Corpo a corpo com a morte
Isso tudo acentua o isolamento de Diego/Dafoe como protagonista, e o filme cresce justamente quando se concentra em seu corpo, em seu embate com a vida e a morte. É um pouco como se ali se chegasse ao grau zero da representação, da dramaturgia, da encenação: resta o corpo fibroso, esquelético, fragilizado, em sua luta para continuar vivo. É contracenando com sondas, aparelhos e agulhas que a performance do ator se mostra mais contundente.
O filme remete, de certo modo, a O show deve continuar (All that jazz, 1979), de Bob Fosse, em que um cineasta e coreógrafo, alter ego do próprio Fosse, repassa em sua cama na UTI cenas de sua vida de excessos, além de delírios induzidos pelas drogas. O humor ácido e sarcástico de Diego é semelhante ao do protagonista de All that jazz, que pode ser verificado neste trecho:
Em Meu amigo hindu as viagens da fantasia têm altos (uma cena de dança de Laurel & Hardy) e baixos (Diego brincando de guerra com o menino hindu com quem convive na quimioterapia). Criam, de todo modo, uma textura heterogênea, inesperada, que contrasta com a dramaturgia e a decupagem algo previsíveis, quando não redundantes, das cenas dialogadas.
Mas, mesmo entre estas últimas, há momentos inspirados, de uma beleza singela, como a cena em que Diego e sua nova namorada (Barbara Paz, no papel que corresponde a ela própria) caminham pela praça da Bandeira deserta, de madrugada, falando dos pontos baixos de suas vidas pessoais e profissionais. (Ele a viu pela primeira vez num reality show fuleiro da TV.) Dois seres vulneráveis e solitários, que apanharam da vida e se despem de máscaras um diante do outro, prontos para um renascimento. O filme poderia terminar ali, mas tem mais uns dois ou três finais que, salvo engano, só fazem enfraquecê-lo.