O sono contra a mercantilização – quatro perguntas a Jonathan Crary

Quatro perguntas

28.09.14

Acaba de ser publicado no Brasil o livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono (Cosac Naify), ensaio do norte-americano Jonathan Crary, professor de arte moderna e teoria da arte, sobre como o sono é a única fronteira não dominada pela lógica da mercadoria. Crary recorre tanto a estratégias militares quanto a cultura popular para mostrar o surgimento de uma cultura “24/7”, na qual a economia força tudo a funcionar 24 horas por dia, uma lógica que vê como empecilho o sono e o descanso humano.

O teórico respondeu a quatro perguntas do Blog do IMS acerca de seu livro:

1. No livro 24/7, você mostra estratégias bastante concretas do regime capitalista para que o sono seja “conquistado”. Por que você considera isso algo específico do capitalismo? Países como Cuba ou Coreia do Norte não demonstram tendências similares?

Bom, eu não afirmo, na verdade, que o capitalismo está tentando conquistar o sono. Esse não é exatamente o meu argumento. O que sugiro é que um sistema econômico global que depende do mercado 24/7 e da produção e do consumo non-stop não é compatível com a inatividade, o tempo morto e improdutivo do sono humano. O capitalismo com certeza danifica e continuará danificando o sono, mas é claro que o sono sempre estará conosco. Para mim, é uma fonte de otimismo o fato de que há um intervalo crucial do tempo humano que é de fato impossível de ser conquistado pelas forças da monetarização e mercantilização. O foco agora é se concentrar na defesa de outros espaços e atividades que enfrentam essas forças, seja na agricultura, na educação, no lugar de trabalho ou em outra área em crise. Acerca de sua pergunta sobre Cuba, com certeza é um país que, pelo menos parcialmente, foi capaz de resistir aos imperativos neoliberais da monetização e da privatização de todo aspecto da vida pública. Infelizmente, temo que não tardará para que Cuba seja integrada ao sistema mundial capitalista de “ajuste estrutural” e da “terapia de choque” do FMI.

2. Você enxerga uma correlação entre o aumento do uso de remédios para dormir e a cultura workaholic que descreve em 24/7?

Pelo que os historiadores conseguem nos dizer, as pessoas sempre tiveram a experiência de “sono perturbado” e os remédios para dormir estão longe de ser uma invenção recente. O que estou tentando demonstrar é como, nas realidades econômicas do neoliberalismo, há um abandono inexorável das proteções sociais e apoio aos indivíduos, sejam estes trabalhadores, crianças, idosos ou deficientes. Se o sono está sendo desgastado agora, é apenas mais uma das muitas facetas da vida que sofreram com a desregulamentação e o privilégio das forças do livre mercado. Simplesmente não é lucrativo para as empresas deixar tempo livre para o descanso humano, a saúde ou o bem-estar. Se as pessoas parecem ser workaholics, não é por escolha própria, mas por causa de uma urgente necessidade econômica. Mas o mundo natural também é vítima do desregulamento neoliberal. Estamos observando, em todos os lugares, formas massivas de pilhagem e exploração que ocorrem em ritmo 24/7, seja através de fratura hidráulica, mineração de carvão, extração de petróleo do mar, agricultura industrial, refinamento tóxico de minerais e a destruição das florestas. E tudo isso acontece noite e dia, sem deixar tempo de sobra para a regeneração e a sobrevivência de ecossistemas.

3. Um dos principais exemplos culturais que você apresenta em 24/7 é a diferença entre o romance de Philip K. Dick (Os andróides sonham com ovelhas elétricas?), publicado nos anos 1960, e Blade Runner, a adaptação cinematográfica do livro que foi lançada nos anos 1980. Existe alguma obra da cultura popular dos dias de hoje que você sente que é representativa do modo de pensar e agir 24/7?

Sim, eu discuto a obra de Philip K. Dick e também, lançados nesta época, os filmes de Andrei Tarkovsky e Chris Marker. Porém, estou menos interessado na ideia de que obras de arte têm uma relação sincrônica com o seu presente, e mais no fato de que elas possuem uma relação mais ambivalente e espectral quanto ao seu passado e futuro. Para mim, um dos objetos culturais mais importantes que abordo é o filme de Chantal Akerman, Do leste (1993), pela maneira como revela formas de existência social que resistem, mas estão em risco de extinção, como a capacidade de ter paciência, de esperar e mostrar deferência em relação aos outros. Também deixo claro que um mundo 24/7 está se desenvolvendo há pelo menos dois séculos, como tentei delinear em minha análise de um quadro inglês do fim do século XVIII, que mostrava uma fábrica à noite operando 24 horas por dia. A ideia de um universo 24/7 sempre existiu na lógica sistêmica do capitalismo, ao passo que ele foi tomando forma no início do século XIX. Mas, retornando à sua pergunta, eu mencionaria o romance mais recente de Dave Eggers, O círculo. É um livro sobre uma empresa gigantesca de mídias sociais cujo objetivo é a exposição completa 24/7 das vidas individuais. Ele dramatiza como um conceito fraudulento de “compartilhamento” abre caminho para a vigilância non-stop e para a manipulação da vida privada e pública.

4. O que você sugeriria a uma pessoa que deseja escapar deste futuro digno de pesadelo que você delineia no livro?

Bom, o futuro que prevejo não é muito diferente do futuro que outros já viram. O que estamos observando são as consequências do crescimento e acumulação descontrolada, da devastação ambiental, e uma desigualdade econômica e uma injustiça que está se intensificando. Não há muito que possa ser feito por apenas uma pessoa, é claramente uma responsabilidade coletiva e compartilhada de tentar forjar formas alternativas de viver, construídas ao redor de certos modelos gerais de ecossocialismo. A coisa mais importante que devemos fazer é tomar decisões radicais acerca de quais são, de fato, nossas verdadeiras necessidades. Precisamos nos recusar a comprar todos os produtos inúteis e sem sentido que constantemente nos dizem que devemos comprar. Porém, rejeitar o consumismo 24/7 e o caráter tóxico da cultura bilionária é apenas o começo, pois se não somos capazes de dar esse primeiro passo, não há possibilidades de desenvolvimento de novas formas de vida. 

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