O vermelho e o negro de Tarantino

No cinema

23.01.13

Django livre celebra, de certo modo, um casamento perfeito: o de Quentin Tarantino com o spaghetti western. Foram feitos um para o outro, de tal maneira que chegamos a ter a impressão de que o filme já existia desde sempre. Só faltava fazê-lo. E Tarantino fez. E fez bem.

Virtualmente todos os elementos do faroeste espaguete, tanto os essenciais como os acessórios, estão presentes de forma intensificada no Django de Tarantino, que pode ser visto como uma síntese do gênero, e ao mesmo tempo sua elevação a outro patamar.

http://www.youtube.com/watch?v=L58LtUvjxc4

A começar pela vingança, mote de dez entre dez bangue-bangues à italiana, mas não só deles. “A vingança é a matéria-prima da narrativa de gênero – romances baratos, tragédias gregas, dramas shakespearianos…”, diz o perspicaz cineasta em entrevista à revista Bravo!. É a catarse em seu estado mais básico.

Em torno desse eixo central, reencontramos todos os outros componentes habituais do gênero. O caçador de recompensas? Está lá. As reviravoltas espetaculares do enredo? Idem. A destreza inverossímil do herói, a brutalidade extrema dos vilões, a estilização da violência, os recursos antirrealistas de linguagem (como a câmera lenta e o zoom), as amplas paisagens desertas, os diálogos sarcásticos… E a música de Ennio Morricone, claro.

Paródia da paródia

Já se disse que o faroeste espaguete já era, em si, uma paródia do western, o mais americano dos gêneros cinematográficos, e que portanto o filme de Tarantino é uma paródia da paródia, pastiche do pastiche. É verdade. Consciente disso, o diretor, em vez de esconder esse caráter “de segunda mão” de Django livre, resolveu acentuá-lo alegremente. Desde o título até a trilha sonora, tudo ali é reciclado. Para Tarantino, o patrimônio cinematográfico mundial é um tesouro a ser saqueado livremente, com a criatividade que cada saqueador tiver.

A originalidade do cineasta, a par de sua notável competência, consiste em deslocar e embaralhar ligeiramente o léxico do spaghetti western, trocar alguns sinais dentro do código geral, dando-lhes um novo sentido.

O deslocamento mais evidente é a escolha de um negro como herói, o escravo liberto Django (Jamie Foxx). Só com essa mudança, mesmo mantidas as outras convenções narrativas do gênero, o sentido geral se transforma radicalmente: estamos num épico de emancipação racial e social. Mas o diretor ao mesmo tempo pisca um olho para o Django original (dirigido por Sergio Corbucci em 1966) ao escalar seu protagonista, Franco Nero, como um mercador de negros que faz negócios com o tirânico Calvin Candie (Leonardo DiCaprio) e pergunta ao herói a certa altura: “Qual é o seu nome?”

http://www.youtube.com/watch?v=uA0EUIKKgec

O enegrecimento da trama tem seu análogo na trilha sonora, em que Morricone e Luis Bacalov (compositor do Django de 1966) convivem com James Brown, Richie Havens, Tupac Shakur e outros astros da black music.

Fantasia e história

Inútil discutir o que há de veracidade histórica ou sociológica nas situações descritas. A intenção de Tarantino não foi a de fazer um filme histórico, mas sim, a exemplo de Bastardos inglórios, reescrever a história de acordo com o desejo e a fantasia. Segundo os pesquisadores, por exemplo, nunca existiram nos Estados Unidos os “mandingos”, entendidos como escravos-gladiadores, forçados a enfrentar uns aos outros numa espécie de ultimate fighting para deleite sádico de seus senhores. (Os mandingos são um grupo étnico da África Ocidental, nada mais.) Mas existe um longa-metragem de 1975, de Richard Fleischer, chamado Mandingo, que é exatamente sobre esse tema. É o que basta: para Tarantino, se uma coisa existe no cinema, existe na vida. Aqui, o trailer do ousado (para a época) filme de Fleischer:

http://www.youtube.com/watch?v=urdeYRJu_js

Desse ponto de vista, Django livre pode ser visto como uma fusão entre o faroeste espaguete e o gênero blaxploitation, que floresceu nos anos 1970 e que o diretor já havia homenageado em Jackie Brown (1997).

Mas o que importa é o modo como Tarantino trabalha dentro da tradição de gênero trazendo ao mesmo tempo sua marca pessoal e dialogando com seu próprio cinema. Um exemplo entre muitos outros: quando Django finge ser feitor de escravos para entrar com seu sócio alemão (Christoph Waltz) na propriedade de Candie e libertar sua amada, está ecoando o que ocorre em Bastardos inglórios quando os heróis se disfarçam de nazistas para ter acesso a Hitler e seu estado-maior. Também a presença do fabuloso Waltz aproxima os dois filmes: se num ele era o vilão, no outro é o parceiro do mocinho.

Humor negro, estética do sangue

O humor negro, que já estava presente em tantos spaghetti westerns, recebe em Django livre um matiz inequivocamente tarantinesco, em especial na antológica sequência em que os membros de uma embrionária Klu Klux Klan se atrapalham com os buracos dos capuzes feitos pela mulher de um deles – e acabam devidamente explodidos. Em outra cena de explosão, é o personagem encarnado pelo próprio Tarantino que vai pelos ares. Que outro cineasta de nosso tempo levaria a autoironia a tal ponto de desfaçatez?

No barroquismo de Django livre cabe naturalmente todo o espectro dramático do faroeste espaguete, do operístico à la Sergio Leone ao circense dos filmes de Trinity, passando pelo lirismo irresistivelmente kitsch das cenas de amor.

Faltou dizer que a estetização da violência e da morte, central ao gênero, encontra em Tarantino um entusiasmado praticante. É visível o prazer com que ele filma o sangue tingindo de vermelho o branco: no campo de algodão, no cavalo de um bandido fuzilado, no cravo branco no peito do escravagista. No contexto de um filme realista, essa profusão sangrenta seria intolerável. No mundo pop-cartunesco de Tarantino, é uma festa para os sentidos.

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