Parece consenso que grande parte da força da poesia de Waly Salomão vinha de sua presença, ou seja, do poema colado à voz e ao corpo, ao gesto performático, enfim. Antônio Risério, na orelha do Armarinho de miudezas, publicado em 1993, classificou Waly como um “happening ambulante”. Daí seu inevitável interesse em música, por exemplo, mais especificamente na escrita de canções, terreno em que alcançou certa notoriedade. Se pensarmos em peças como Mel e Vapor barato, esta última composta em parceria com Jards Macalé, apenas para citar os exemplos mais óbvios, logo é possível concluir que a canção foi um lugar fértil para a sua poesia, embora Waly não fosse músico. Seja como for, creio que seu passeio pela canção esteja ligado a este aspecto maior de sua literatura: poema e corpo não devem se separar. A página então deve ser “amada enquanto carne”, em uma “espécie per-versa de foda”, conforme sugere um poema do Gigolô de bibelôs, de 1983, classificado por Paulo Leminski como “um livro de exageros”.
No excelente documentário de Carlos Nader sobre Waly Salomão, Pan-Cinema permanente, filmado durante mais ou menos 15 anos e finalizado apenas em 2007, quatro anos após a morte do poeta, temos uma prova ainda mais contundente disso. Uma das discussões centrais do filme consiste na maneira como Waly enxergava a vida como um grande palco, segundo o depoimento de Antonio Cicero, amigo e um dos principais interlocutores do poeta baiano. O contrário também seria verdadeiro, quer dizer, a arte torna-se um lugar de teste para a própria vida – e a série de poemas intitulada “Na esfera da produção de si mesmo”, também do Gigolô, não deixa de ser um testemunho eloquente disso, quando afirma e repete de modo quase incessante: “Tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. Voltando ao documentário, Nader comenta também sobre a dificuldade de filmar Waly em situação espontânea, chegando ao ponto de pedir que o poeta finja que está dormindo, pois só assim teria – supostamente, claro – uma cena menos montada.
De fato, Nader é bastante sensível na sugestão de imagens e cenas que captam aspectos determinantes da obra e da vida de Waly. O filme abre, por exemplo, com a vitrine de uma loja de eletrodomésticos repleta de aparelhos televisivos, enquanto os produtos são anunciados por um locutor. Depois, em um truque, uma dessas televisões passa a transmitir a curiosa entrevista de Waly em um programa na Síria, país onde nasceu seu pai – o poeta é fruto do encontro entre um sírio e uma sertaneja. Quer dizer, a televisão como metáfora inaugural de Pan-Cinema permanente não deixa de ser uma afirmação de que, como dizia o próprio poeta, a poesia não tem lugar (nobre) para acontecer. No entanto, talvez a cena mais marcante do filme seja a ida de Waly à linha demarcatória que separa os dois hemisférios, no Equador. Ainda no avião, voltado para a câmera, o poeta afirma que quem está falando é “um borderline, alguém fronteiriço, que não sabe onde termina a lucidez e começa a loucura”. Eis aí, em poucas palavras, o primeiro programa poético de Waly.
Acredito, portanto, que Poesia total (Companhia das Letras, 2014), reunião de todos os livros de Waly Salomão, deve servir também para colocar essas questões à prova: em que medida a literatura de Waly, sobretudo a leitura que fazemos dela, pode tomar outros rumos com a ausência de seu principal ator? Como seus poemas se comportam agora, organizados em livro, perenes, imóveis? Qual será o impacto de sua obra (pois é disso que se trata agora, de uma obra) na vida de uma nova geração de leitores? Finalmente, como ler uma poesia total que sempre reivindicou um lugar fora da zona da página, isto é, a incompletude? Depois de Pescados vivos, publicado em 2004, alguns meses após a morte de Waly, quase não tínhamos notícia de seus livros, e agora de repente eles chegam assim, chegando: em edição verde, rosa e alaranjada e mais de 500 páginas, como se Poesia total fosse o próprio poeta entrando aos gritos em um vernissage.
De qualquer modo, digamos que mesmo o registro escrito da poesia de Waly (isto é, o livro que temos em mãos) mantém forte caráter performático, extravagante e verborrágico, como se os poemas quisessem saltar para fora da página, gritar ou agir com (e contra) o leitor: “Aviso: / Para ser lido alto. Para ser lido/ bem alta voz para ser lido para/ dentro. Para ser um incêndio/ LUZ FOGO CALOR”, diz um de seus inúmeros textos sobre o assunto. Daí também tantos versos e poemas inteiros escritos em caixa alta, alguns em negrito, dimensões tipográficas variadas, fotografias de manuscritos, enfim, uma exploração até então inusual de recursos imagéticos, mais visíveis no Gigolô, e que pouco a pouco vai sendo mais bem modelada. No plano semântico, temos as inúmeras repetições, de versos e de palavras, ênfases, exclamações, como se o poeta insistisse em sua ideia, por um lado, ou como se repetisse o mesmo enunciado até o limite do seu esvaziamento, o que às vezes pode soar cansativo. Quanto a isso, no entanto, Waly parece bastante claro e também radical em sua proposição: o leitor precisa fazer da leitura, de fato, uma experiência, quer dizer, ter olho de míssil, e não de fóssil, usando um jogo de palavras feito por ele próprio.
O título do livro, que traz a ideia de totalidade, além de se referir à reunião de todos os trabalhos do poeta (embora haja alguns cortes também, como na parte do Armarinho de miudezas, por exemplo, que traz uma nota editorial informando que apenas os “textos em verso” foram reproduzidos, o que é problemático), faz pensar também em um segundo programa poético de Waly: a apropriação de tudo ou quase tudo que lhe caiu nas mãos. À sua maneira, o poeta realiza uma espécie de sobreposição ou fluxo desvairado de materiais e heranças totalmente distintas, quer dizer, não exatamente uma síntese. Se por um lado a poesia de Waly incorpora as novidades da poesia concreta, através de usos não tradicionais do espaço da página e das tipografias, o poeta não é insensível ao lirismo nacional, aliás muito pelo contrário, e tampouco ignorou a tradição oral nordestina – não é aleatório, portanto, que um de seus livros, de 1996, se chame justamente Algaravias. José Miguel Wisnik diz que seu “teatro instantaneísta é um arrastão que põe tudo à volta em ato, rebatendo tons que podem estar entre Mallarmé e a Mangueira”. Por sua vez, Davi Arrigucci Jr. conclui um pequeno texto sobre o poeta fazendo a seguinte pergunta: “Waly, te percebi onde não estavas?”. Eis aí, afinal, o lugar mais provável de encontrá-lo.
Victor da Rosa é crítico literário e doutorando em Literatura pela UFSC.