Pelas beiradas da Copa

Música

06.07.14

Thiago Pethit e Dom La Nena gravam na cozinha de um apartamento

Há pelo menos dois projetos “off-Copa” que merecem ser vistos com cuidado. Um deles é o Offside Brazil, um multirão fotográfico feito pela Magnum em parceria com o IMS para registrar como anda o entorno dos jogos. Nele, os fotógrafos Susan Meiselas, David Alan Harvey, Jonas Bendiksen e Alex Majoli, da Magnum, se juntam aos brasileiros André Vieira, Barbara Wagner, Breno Rotatori e Pio Figueiroa e aos coletivos Mídia Ninja e Garapa para cobrir o que se passa longe dos limites da Fifa e da esquina da Aspicuelta com a Mourato Coelho, em São Paulo.

O segundo projeto chama-se Arua Amúsica, uma série de Take Away Shows com músicos brasileiros feita pelo site francês La Blogothèque. Nele, o produtor musical Jeremiah [Jérôme Derathé] aproveita o gancho da Copa para apresentar 14 vídeos gravados com artistas nacionais como Emicida, Tulipa Ruiz e Rael. Os vídeos foram produzidos em São Paulo (exceto um deles, gravado em Porto Alegre) entre 2011 e 2012 e estão sendo divulgados ao longo do mundial, pelo YouTube.

Os vídeos da série “Take Away Shows”, que deram fama à Blogothèque, costumam ser feitos na rua ou dentro de apartamentos, sem muita estrutura, mas com notável qualidade sonora e atmosfera intimista. Alguns incluem locações inusitadas como aquele em que os integrantes do Arcade Fire se espremem para tocar em um elevador. Há neles uma apropriação da linguagem do videoclipe e de outras referências como a estética dos documentários e dos vídeos estilo “bastidores”, mas há também uma tentativa de não aderir completamente a nenhum desses formatos. Com câmera na mão e em um único plano-sequência, os vídeos acabam captando um pouco do ambiente, por vezes revelando mensagens opostas às das canções.

No caso dos vídeos gravados aqui, o resultado são interações inusitadas com o cenário e com a “cor local”. O vídeo em que Mallu Magalhães canta “Sambinha bom” a bordo de um caminhão de flores, por exemplo, é aberto por uma voz feminina dizendo “ou ele vai bater o carro ou vai atropelar o Vítor, as duas opções são péssimas, entendeu?”. Logo depois a cantora surge com sua voz mansa e letra singela, mas isso fica matizado pela fala anterior, criando uma ruptura entre esse estilo de canto feminino meigo, em alta entre as cantoras brasileiras, e a confusão de uma cidade que ou bate o carro ou atropela o Vítor.

No vídeo de Rafael Castro, a letra meio erótica, meio brutal de “Fazenda”, que compara a relação entre dois amantes à posse de animais, recebe um cenário significativo no baixo Augusta, com trabalhadores fazendo a manutenção de uma máquina de refrigerantes enquanto o músico toca, deslocado.

Nas ruas de Pinheiros, Criolo, Luísa Maita, Rodrigo Campos e Kiko Dinucci fazem versões de “Lantejoula”, “Linha de frente” e “Mariô” no meio da calçada e dentro de um ateliê de costura. No fim do vídeo, Criolo acaba divulgando o endereço de Campos num áudio incidental.

Na janela de um apartamento na Avenida Paulista, a violoncelista Dom La Nena usa uma tempestade como base para sua canção “O vento”. “Quando chegamos em São Paulo e vimos o contraste entre a natureza e a dureza da cidade, logo pensamos que seria o lugar perfeito para fazer esse vídeo. Tenho a sensação de que a cidade tomou conta de um lugar que já foi selvagem e que em determinados momentos a natureza tenta retomar esse espaço. É justamente disso que se trata essa canção”, conta Dom.

Já o vídeo de Lucas Santtana, filmado no heliponto da Folha de S.Paulo, mostra o centro da cidade visto de cima, cenário um tanto quanto melancólico para a música cantada em inglês, com sotaque baiano. E assim os vídeos vão traçando uma geografia composta de fragmentos da cidade, com uma trilha sonora que ora incorpora, ora nega esse entorno.

“Em uma cidade como São Paulo, a forma de olhar para os lugares importa mais que a locação em si. A música e os movimentos da câmera ajudam a resignificar cenários conhecidos, como um mantra em uma meditação. A beleza e o mistério estão sempre na próxima esquina”, diz Jeremiah, da Blogothèque.

Para Thiago Pethit, a graça da série está na simplicidade de recursos. “O segredo do som é a microfonação certa e uma boa mixagem e finalização, mas fora isso é uma produção muito simples, feita em poucas horas”, conta o cantor, que gravou com o fundador da Blogothèque, Vincent Moon [Mathieu Saura], em 2010 e com Jeremiah em 2011.

O produtor, que é casado com Dom La Nena, conta que a escolha dos músicos foi feita a partir dos artistas que já ouvia em casa e por indicação de amigos: “Acompanho as carreiras de alguns deles, como Mallu, Tulipa e Pethit, há algum tempo e realmente queria filmar com eles. Em outros casos, como aconteceu com Kiko Dinucci, fui apresentado por amigos e acabei tendo uma grata surpresa”. A decisão de soltar o material coletado ao longo de dois anos durante a Copa foi uma forma de apresentar outro lado do Brasil aos europeus empolgados com o mundial: “Não sinto que esse tipo de evento ajude a passar uma imagem palpável do país. Quis usar a atenção que o Brasil tem recebido por conta do futebol para introduzir um pouco da música brasileira contemporânea, que é algo que me interessa particularmente”, explica Jeremiah.

, , , , , , , , , , , , , , , ,