Perambular é um prodígio

Séries

05.11.13

No verão de 1982, fui enviada para a China como fotógrafa da Editora Abril para compor, junto ao jornalista Edson Higo, um ensaio para a revista Quatro Rodas. Uma matéria pequena, no entanto indicativa da repentina abertura entre a China e o resto do mundo. Ao chegar ao aeroporto de Beijing, no final de uma tarde cálida de verão, na inesperada ausência da costumeira recepção oficial outorgada a visitantes e jornalistas estrangeiros, fomos abordados por um grupo de motoristas de táxis que, vendo nosso desconcerto, sugeriram uma solução emergencial, levando-nos prontamente ao ainda existente Friendship Hotel, reminiscência arquitetônica do oficialismo soviético dos anos 1940.

Na manhã seguinte, dirigindo-nos ao longo de alamedas frondosas por entre bicicletas mil, fomos entregues ao Ministério de Relações Estrangeiras só para descobrir, para espanto mútuo, que os documentos referentes à nossa vinda tinham-se perdido na burocracia da recém-estabelecida representação da China em Brasília, e que, assim sendo, nos encontrávamos sem permissão para pautar as viagens planejadas para a matéria, faltando os vistos necessários para locomoção. Indo e voltando do Ministério ao Friendship Bureau, ponto de apoio oficial para todo visitante ao país, fomos acolhidos pela atendente oficial do bureau, uma antiga e pequenina senhora que, percebendo nossa confusão e fitando-me duramente no olho disse, num inglês ali chamado de pidgin-english: “Você doida demais, eu ajudo, mas, veja mapa na parede e aponte para todas partes querendo visitar!” Obedecendo ordens, apontei para essa e aquela região desse enorme país, perplexa, tentando me lembrar do nosso plano de ação: Hohhot, Inner Mongolia, Satong, Xian, Guanzhou, Gueilin e, naturalmente, Beijing, início dessa nossa viagem curta e rápida demais. “Ok!”, disse ela, “aqui tens permissão para 15 dias, você vai nesses lugares, mas somente para esses lugares e nenhum outro lugar podes ir!”; sua confiança na minha “doidice” possibilitou uma proeza rara: a liberdade de perambular, dia e noite, por aqui e por ali, a sós, sem os freios de guia oficial.

As imagens, aqui animadas em vídeo, foram capturadas nas ruelas de uma Pequim muito diferente da Beijing de hoje, parecendo compor uma pequena antropologia visual através de pequenos gestos e incontáveis objetos de um-tempo-outro prestes a mudar. Pois a maioria dessas ruelas ou hutongs tradicionais foi destruída para criar uma cidade impiedosamente “atual”; alagados em terrenos baldios aguardando construção, sobrevivendo algumas como pontos turísticos a preservar.

http://youtu.be/X9tNa_2_DJM

Achei interessante contrapor a essas fotos duas imagens do fotógrafo chinês Sze Tsung Leong, tiradas com precisão topográfica em grande formato, mostrando esses acampados resultantes da aniquilação.

Aqui vai uma imagem do fotógrafo Sze Tsung Leong colocada ao lado de uma foto minha:

Maureen Bisilliat | Acervo Instituto Moreira Salles
Um dos lugares visitados para a reportagem “China- O império do centro do mundo”, revista Quatro Rodas, 1982. 

 

© Sze Tsung Leong – No. 6 – Huashizhong Fourth Lane, Distrito Chongwen, Pequim, 2003.
Foto publicada no livro History images. Göttingen: Steidl, 2006.

 

 

As fotografias da série History Images retratam as transformações de cidades da China ao registrar a destruição ou a substituição das antigas residências, edifícios ou até de áreas inteiras. São imagens de histórias em transição de edifícios e bairros tradicionais, fábricas e paisagens naturais em processo de desaparecimento.

Sze Tsung Leong (nascido na Cidade do México em 1970, nacionalidade americana e britânica) vive em Nova York. Seu trabalho inclui as séries Cities e History Images, ambas retratando as recentes transformações radicais nas cidades chinesas, e Horizons, fotos panorâmicas de paisagens urbanas de vários lugares do mundo, que, em conjunto, questionam a relação entre “próximo” e “distante” e entre o desconhecido e o familiar. Fotografias dessas séries foram incorporadas às coleções permanentes de instituições como o MoMA de Nova York, MoMA de São Francisco, a National Gallery do Canadá, o Museu de Belas Artes de Houston e da Art Gallery da Universidade de Yale, entre outras. Informações extraídas do site oficial http://www.szetsungleong.com/ 

PS.: Dois livros extraordinários e surpreendentes:
The ancient ship, de Zhang Wei, publicado em 1987, conta a história de três gerações que vivem no norte da cidade fictícia de Wali, durante os conturbados anos pós-revolução cultural e abertura da China. E Pow!, publicado em 2012 pelo escritor chinês Mo Yan (Prêmio Nobel 2012). O romance tem sido interpretado como um comentário alegórico sobre as condições da sociedade chinesa contemporânea, embora o próprio Mo afirme que ele é apenas um contador de histórias, sem maiores interesses pela ideologia.

TO WANDER IS TO WONDER

In the summer of 1982 I was sent as a photographer, with the journalist Edson Higo, to do a short cover story on China for the Brazilian magazine Quatro Rodas. Upon arriving, having no one to officially receive us, we were approached by one of the airport taxis who took us to the still existing Friendship Hotel, reminiscent of the architecture of Soviet officialdom of the forties. The next morning we went straight to the Ministry of Foreign Affairs only to discover that, strangely enough, they had received no information signalling our arrival as foreign journalists to China! Back and forth we went from Ministry to Friendship Bureau where an elderly lady attendant, seeing our utter confusion, looking me in the eye said: “You crazy but, see map on the wall and you point to all places you wish to go!” Unwittingly, I dotted my finger on this and that region of China’s vast territory: Hohhot, Inner Mongolia, Satong, Xian, Guanzhou, Gueilin and, of course, Beijing, the start of our too rapid journey. “Ok!” she said, “here is 15 day permission, you go to these places, but only these places nowhere else!”

This, at that time most unexpected situation, gave us a bird’s eye view of China allowing us, above all, the liberty to wander. It is this wandering we would like to show you – scenes captured in the streets of a Peking much changed from the Beijing of this century – snapped within the quickness of travel, transposed into a veritable visual anthropology, detectable in the myriad objects of wear and tear used by people living in an urban China belonging to another time.

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