Aos 70 anos redondos, o escritor português António Lobo Antunes casou há pouco tempo pela terceira vez e está profundamente apaixonado – por si mesmo. Mas não se trata de uma paixão novinha em folha: este xodó tem precisamente 70 anos. Criado no seio de uma família da alta burguesia lisboeta, o romancista acabou por herdar um título de nobreza do seu avô, que brande como uma clava. “A aristocracia é de uma estupidez e incultura total. Mas tem bons perfumes, as suas mulheres são muito bonitas e sabem rir no tom adequado. E isso é muito importante.”
Verdade: Lobo Antunes se ama enternecidamente. Se perguntado por que, acharia a pergunta redundante: “Ué, simples questão de bom gosto!” A opinião de Lobo Antunes sobre Lobo Antunes não é nada consensual: por exemplo, não se considera nem um pouco genioso (genial, sem dúvida): “Não sei por que existe a imagem de que sou uma pessoa difícil. Há pouco tempo disseram-me isso e fiquei estarrecido.” Claro que 99,9 por cento dos escritores são narcisistas, mas ele eleva a autoestima a uma forma de arte. Vendo a coisa pelo lado positivo, ninguém pode acusar Lobo Antunes de falsa modéstia. E não só no âmbito literário. Compraz-se em apregoar que era um pão na juventude (mas, quando a gente assinala isso, fica uma onça: “Tenho a certeza absoluta de que não falo muito nisso! Embora hoje veja que fui um bebê e um moço lindo de morrer.”)
E, no fundo, no fundo desconfia que essa beleza não se desvaneceu completamente (não deixa a peteca cair!). Porém, como a boa pinta não é tudo na vida, muito menos para um intelectual, ele nunca esconde que seu teste de inteligência indicou um Q.I. igual ao de Einstein (180 cravados). E que as suas obras, no mínimo, são tão prodigiosas como as de?mais ninguém. “Compreendo Oscar Wilde quando lhe perguntaram quais eram para ele os dez melhores livros do século e respondeu: ?Você me faz uma pergunta embaraçosa porque só escrevi quatro.'” Antunes não sofre esse constrangimento, pois já escreveu 31. Sabe perfeitamente quais são os 31 melhores livros do século passado e já com o 21 de lambuja. Como explica: “Não sou um homem modesto, mas sou humilde. Sou uma galinha que guarda seus ovos.” Ovos Fabergé, claro.
Mas tem um bom álibi: no seu caso, a massa cinzenta é mal de família. O pai dele era um médico proeminente e seus cinco irmãos mais novos, todos varões, são expoentes ilustres da sociedade portuguesa: entre eles um diplomata (Manuel), um arquiteto (Pedro), um pediatra (Nuno), um animador cultural (Miguel, jurista do Tribunal Constitucional e ex-diretor do Instituto Português de Cinema), um neurologista (João) que aos 30 anos já era presidente da Associação Mundial de Neurocirurgia, também autor de ensaios que embolsaram o badaladíssimo prêmio Pessoa.
O próprio escritor é psiquiatra, embora essa não tenha sido exatamente uma vocação irresistível. Pelo contrário: aos sete anos, ao circular num táxi, decidiu ser romancista e ponto final. “Comecei a escrever por causa do Mickey, do Flash Gordon”. Aos 16, quis matricular-se na Faculdade de Letras. O pai deu a maior força: “Beleza, Toninho!” No dia seguinte, inscreveu o filho em… Medicina. “Muito democrático”, ironiza Lobo Antunes. Por falar nisso, o pai nunca deu um pio sobre a obra literária do primogênito. Minto: houve uma exceção, a respeito do romance A ordem natural das coisas. Não se pode dizer que o comentário tenha sido ditirâmbico: “Não entendi bulhufas”.
Mas o patriarca Antunes não era nenhum filisteu. Obrigava os filhos a copiar quadros de Gauguin e adorava Velásquez e Vermeer. Quando António Lobo Antunes fez os seus verdejantes 14 anos, o presente paterno foi a primeira edição de Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline – não exatamente uma aventura de Harry Potter. O futuro autor gostou tanto que escreveu uma carta ao escritor maldito (outro médico?). E Céline respondeu! Lobo Antunes guarda até hoje o envelope: “A minha maior alegria não foi tanto a carta, mas ver no envelope o meu nome escrito por ele.” Talvez por isso, muitos anos mais tarde, Antunes se sairá com esta: “O nome do leitor é que devia vir na capa dos livros.”
No entanto, a principal referência de Lobo Antunes na infância e adolescência foi o seu avô Antonio, que lhe legou o nome próprio e o título de nobreza. Quando o netinho tinha 13 anos, vovô o chamou e, a beira de um piti, vociferou à queima-roupa: “Você é bicha?” Tudo porque o pré-adolescente queria ser escritor. Seguramente, o zeloso avô nunca lera Hemingway ou Norman Mailer, senão saberia que a literatura também tem seus machos alfa até bem cavernícolas.
Já a mãe de Lobo Antunes leu Proust inteirinho, de fio a pavio. Em contrapartida, Lobo Antunes não se lembra de um mísero beijo que a mãe lhe tenha dado, nem de raspão. Dela, herdou o apreço pela leitura e, já na maturidade avançada, a surdez – usa um Viennatone no ouvido direito. Um dia, a mãe suspirou: “Preferia ser cega, pois dos cegos ninguém ri, enquanto dos surdos todo mundo goza.” Em Memória de elefante, seu romance de estreia, o autor escreve: “E sentiu-se como expulso e longe de uma casa cujo endereço esquecera, porque conversar com a surdez da mãe afigurava-se-lhe mais inútil do que socar uma porta cerrada para um quarto vazio, apesar dos esforços do vianatone através do qual ela mantinha contato com o mundo exterior, um contato distorcido e confuso feito de ecos de gritos e de enormes gestos explicativos de palhaço pobre.”
O avô que o escritor tanto venerava, também um António, nasceu adivinhem onde? Quem respondeu em Belém do Pará acertou em cheio na testa da mosca. Daí que Lobo Antunes tenha se familiarizado precocemente com os clássicos brasileiros, como José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato? Ainda assim, não morre de amores pelo Brasil – conquanto esteja agora em uma fase já não de aversão mas de conversão. Em uma Flip, este Lobo uivou: “Sei muito bem que vocês gostam mais do outro.” O outro, claro, era José Saramago, então ainda vivo e proverbial nêmesis de Antunes. Com o seu cotovelo em estado de coma, Lobo Antunes propôs uma meia-sola no Tratado de Tordesilhas: “Ele que fique com o Brasil, que eu fico com o resto do planeta.” E faz questão de sentenciar: “Angola é muito mais bonita do que o Brasil.”
Claro que está chorando de barriga cheia. Traduzido em dezenas de países, não lhe falta reconhecimento nem tietagem. É um favorito crônico ao Nobel. Jogando em casa, garfou o prêmio Camões, hoje o mais prestigiado da língua portuguesa. E o Neruda e o Internacional Íbero-Americano. Mas jura que não está nem aí. “Não penso em prêmios. Se calhar está vindo outro hoje ou amanhã. Não tem importância nenhuma. É bom quando tem muito grana.” Na Alemanha, as edições das suas obras chegam a vender meio milhão de exemplares a cada título. Na França é idolatrado: o ministério da Cultura atribuiu-lhe as insígneas de Comendador das Artes e das Letras Francesas. Há dois anos realizou uma excursão literária pelos Estados Unidos, tipo pop star – de avião, trem, táxi, limusine. Na sala apinhada da New York Public Library, leu um excerto da tradução de Que farei quando tudo arde. Apesar da reputação de irascível, quando quer Lobo Antunes sabe ser espirituoso e afável. Naquele dia, na biblioteca nova-iorquina, resumiu assim a história de Ulisses, na Odisseia: “Vou chegar tarde em casa.”
Em 1970, o mesmo ano em que casou pela primeira vez, Lobo Antunes partiu para a guerra do Ultramar, como ficou conhecido o conflito que culminou na independência das colônias portuguesas na África e, por fim, ajudou a dar um chega prá lá na caquética ditadura de Salazar. Serviu como tenente médico e só regressou em 1973, profundamente transfigurado pela carnificina. Portugal perdeu a guerra colonial, e Lobo Antunes perdeu a paz para sempre. Em compensação, ganhou um tema fecundo, ao mesmo tempo realista e metafórico. Embora tenha combatido com bravura, devido às circunstâncias do conflito – que se destinava a conservar um império encarquilhado e a impedir a emancipação das suas satrapias – o tenente Lobo Antunes acabaria por subscrever George Orwell: “A maneira mais rápida de acabar com uma guerra é perdê-la.”
Repito: o escritor lutou com valentia, não se limitando à sua função especializada (amputar pernas e braços, operar em condições precárias, com infecções fervilhando e balas silvando no ouvido). Quantas pessoas matou? “Não sei. Era muita gente disparando para o mesmo lado.” Naturalmente, os quebra-paus bélicos são um assunto sempiterno da literatura, da Ilíada a Os nus e os mortos, de Os sertões a Guerra e paz. Mas Lobo Antunes conjuga o paradigma e o arquétipo das batalhas, a História e a Necessidade, o contigente e o universal. A guerra não selou só sua biografia, mas também a sua ética e a sua estética – seu pathos, seu ethos e sua poética. Múltiplos avatares lusos do capitão Kurtz – o atormentado personagem de O coração das trevas, de Conrad – bruxuleiam em suas páginas, ecoando “o horror, o horror.” Em O esplendor de Portugal e em Conhecimento do inferno, ele descreve uma região encantadora, chamada Baixa do Cassange, para onde os batalhões eram conduzidos quando estavam exaustos e depois de muitas baixas. “Ali não havia guerra, só ameaça, e os soldados começaram a suicidar-se. Quando viviam a presença da morte não se suicidavam e quando a ameaça das bombas e as emboscada se atenuou começaram a se matar”. Astúcias de Tânatos , com o seu plano B. “Como eu poderia não ter mudado com essa experiência? Falava-se em partidas de futebol nas quais a bola eram cabeças humanas… E eram substituídas com toda a naturalidade: ?Essa bola já não dá, outra cabeça!'”.
A guerra acabou há muito, mas Lobo Antunes esperneia contra trincheiras de inimigos em sua própria terra. O romance As naus constituiu a gota d’água e foi hostilizadíssimo quer pela direita quer pela esquerda, por ser “contra Portugal”. A luta continua. Porque ele não se rende: dá uma boiada para entrar em uma briga, e a espécie bovina inteira para não sair dela. Ameaçou abandonar Portugal para sempre e ir viver metade do ano nos EUA e a outra metade… no Brasil. Em Os cus de Judas, descreve uma cena atroz da qual foi testemunha ocular: em Angola, durante a guerra, um agente da PIDE (a polícia política de Salazar) aproximou-se de uma negra grávida e, como forma de apresentação, lhe deu um baita pontapé no ventre. Claro que revelações desse teor não contribuíram para a popularidade do autor nos meios castrenses.
Além do conteúdo dos seus romances, houve um recente estopim para a crispação dos militares veteranos: o livro Uma longa conversa com Lobo Antunes, do jornalista João Céu e Silva. Numa das passagens mais controversas, ele conta: “Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo: matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava e, como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros.” O horror, o horror. “Lembro-me de um soldado negro que exclamou: ?Boa noite, senhores!’ – e deu um tiro na própria têmpora.”
A revelação desencadeou um turbilhão de protestos em blogs e chegou uma queixa-crime ao chefe do Estado-Maior do Exército, que menciona “uma série de mentiras infames.” O Estado-Maior respondeu que se tratava de uma “obra de ficção”. Lobo Antunes concorda: “Quanto mais simbólica é a linguagem, mais verdadeira se torna.” Lobo Antunes, cuja memória de elefante (o título do primeiro romance não foi por acaso) é lendária, admira e perfilha a frase de Scott Fitzgerald: “Toda vida é um processo de demolição.” A propósito, a sua memória elefantina é paradoxal: “Sou capaz de memorizar sem me dar conta centenas de poemas inteiros; no entanto, não me recordo de uma única linha que eu tenha escrito.” Azar dele.
O manuscrito de Memória de elefante, seu livro de estreia, rolou de editora em editora, aos trancos e barrancos, sendo sucessivamente esnobado, até sair numa casa pequena. O romance é de 1979, e evoca os preceitos da antipsiquiatria de Cooper e Lang (hoje fossilizados), segundo a qual todo mundo é louco, menos os loucos. Com o sucesso editorial, Antunes foi aos poucos abandonando as consultas. Por fim, passou a ir ao hospital só para escrever suas obras, na sua caligrafia minúscula e cuneiforme (letra de médico!), sentado a um canto. Ocasionalmente, ainda atendia os pacientes antigos. Depois almoçava na cantina e voltava para casa.
Ao regressar de Angola, trabalhou em um hospital de crianças cancerosas, onde se encolerizou com Deus – apesar de ser ateu. Estava internado um menino de cinco anos, com leucemia. Na opinião do escritor, “Deus não tem o direito de pôr uma criança a gritar por morfina.” O garoto morreu e vieram dois homens com uma maca, mas como o cadáver era muito pequeno, bastou um deles enrolá-lo num lençol e levá-lo ao colo pelo corredor – porém um pé do menino saiu do lençol e Lobo Antunes viu o pé se afastando, balançando no ar. “Nesse dia decidi: vou escrever para aquele pé.” E fixou uma ideia sobre o Todo-Poderoso em que não crê: “Acho que Deus gosta muito de palermas, porque não para de fazê-los.”
Lobo Antunes não se importa nem um pouco em alfinetar – com um arpão – as tribos literárias portuguesas. Numa Feira do Livro, em Paris, flanqueado por quarenta colegas lusos, declarou que, para o lirismo e a sátira, os seus compatriotas ainda dão para o gasto, mas não sabem analisar nem estruturar um romance. “Em parte por preguiça, em parte por incapacidade natural, assim como não temos filósofos, nem compositores nem pintores.” Naturalmente, toda regra tem uma exceção: por coincidência, ele.
Além das ressonâncias morais e emocionais da guerra, a obra de Antunes se ocupa também do complexo rito de passagem do fim do Estado Novo autocrático para a implantação da democracia em Portugal, com os solavancos sociais ditados pela erosão dos valores tradicionais e o advento da modernidade, através da adesão do país à União Europeia. Cessara abruptamente a utopia reativa de Salazar, de uma nação arcádica, de pastores e agricultores, “orgulhosamente só”. Esse processo de mudança social acelerada, de instabilidade política e de alteração dos paradigmas econômicos, das mentalidades e dos costumes é refletido nas relações familiares. Os romances de Lobo Antunes são povoados de clãs disfuncionais, em que o indivíduo perdeu suas referências e a comunicação entre seus membros é superficial ou nula. Os protagonistas – quase sempre anti-heróis – exercem profissões liberais e são oriundos de “boas estirpes”, espelhando a própria matriz do autor.
Outro tema recorrente na obra de Antunes, sobretudo na primeira fase, é a memória reverencial de sua primeira mulher, Maria José, com quem teve duas filhas. Depois de separar-se dela relutantemente, o escritor voltou ao convívio conjugal, quando soube que Maria José estava com um câncer terminal. Apesar do desespero – ela chegou a pesar 27 quilos -, Antunes descreve até hoje esse período como “dias felizes”. Casou mais duas vezes (a segunda com uma ex-ministra da Cultura e a terceira recentemente, com a diretora de uma “revista do coração”), mas “Zezinha” é ainda agora única esposa de quem fala. Depois da morte de Maria José, passou a escrever todas as tardes, por anos a fio, na casa em que ambos tinham vivido. A separação da primeira mulher, com o desfecho trágico, é talvez o lugar geométrico da obra de Antunes, realçando sua incapacidade em superar esse trauma obsessivo. Um dos motivos para essa fixação – entre outros, para não cairmos no reducionismo unidimensional – pode ter sido o apoio inabalável que Maria José prestou ao marido, então numa etapa de afirmação literária e natural insegurança criativa. Uma dádiva que ele valorizou acima de tudo, pois subscreveria alegremente a opinião de Nabokov: “A literatura é tudo ou não vale uma hora de canseira.” Quem pensa o contrário não passa de um daqueles palermas da linnha de montagem de Deus.
Apesar disso, Lobo Antunes é um mulherengo, embora recuse o rótulo de libertino. Pelo contrário, define-se inopinadamente como “um puritano”. Na sua infância, a biblioteca familiar continha “livros permitidos” e outros que eram trancados com chave. Em seus romances, nunca há cenas de sexo. E ele assume aquela condição: “Sim, sou um puritano. Não entendo os chamados desvios sexuais. Posso compreende-los intelectualmente, mas afetivamente não os comprendo. Tenho uma parte de conservador que é muito forte. Quando se realizou essa espécie de libertação sexual, depois da Revolução dos Cravos, faziam-se camas redondas e eu nunca quis nada disso.” Em suma, um quadrado.
Com ou sem cama redonda, após algum tempo de viuvez o romancista mudou-se para um apartamento perto do Cassino Estoril. Lá, precipitou-se durante dois anos numa espécie de catarse dupla e perversa: uma atividade sexual quase priápica e o jogo compulsivo (“Como compreendo O jogador, de Dostoiévski…Conheço gente que pede aos porteiros dos cassinos que não os deixem entrar.”). A promiscuidade foi tanta que chegou a ter “clientes sexuais”: “Elas falavam entre si, as que tinha estado comigo e as que não tinham estado, e eu recebia propostas… Sexualmente era muito estimado.” Uma noite, Lobo Antunes foi buscar o escritor e amigo José Cardoso Pires a um bar. Quando o viu, a dona do estabelecimento aproximou-se e exclamou, ronronando: “Você é a melhor cama de Lisboa!”
Segundo as suas filhas, o pai prefere as mulheres do tipo manequim, esguias como esculturas de Giacometti. Porém, na tal excursão literária pelos Estados Unidos, ele deu uma receita de mulher diferente, que não corresponde em nada àquela de Vinicius de Moraes (“As feias que me perdoem…” etc.): “Gosto das mulheres portuguesas, pequeninas e de bigode. ” Todavia, por mais sedutor que tenha sido ou ainda seja, Lobo Antunes reconhece uma verdade universal: todos os homens são leigos em mulheres – nem Freud deslindou este continente desconhecido, entregando os pontos e pedindo água. Antunes também dá a mão à palmatória: “Para mim elas continuam um mistério. Nunca saberei o que é ter um filho, nem o que significa a primeira menstruação, nem como é um orgasmo feminino… Na realidade, não sei nada.” O que não o impede de entrar na dança todo lampeiro: “A sexualidade sempre foi muito importante para mim – e continua a ser.”
Talvez por isso (pela estética é que não foi) ele xeretou a coqueluche brega/lasciva Cinquenta tons de cinza. E depois esculhambou: “Fala de partes do corpo que eu, médico e escritor, nem sabia que existiam… Agora sério: a quantidade de coisas – e isso realmente ignorava – que se podem enfiar em várias partes do corpo! Achei aquilo completamente ofensivo para as mulheres.”
Sobre o amor, Antunes divaga – no seu timbre pausado e melancólico – com uma sensibilidade de sismógrafo. Não fosse ele o autor de um romance intitulado (parafraseando Descartes) “Tratado das Paixões da Alma”. “A noção de amor varia de pessoa para pessoa. Muitas vezes estamos apaixonados ou estaremos agradecidos por gostarem de nós? Ou será que o outro é apenas alguém junto de quem nos sentimos menos sozinhos? Não sei bem o que é a verdade acerca do amor e duvido que haja quem saiba. Só tenho perguntas, não tenho respostas. Até que ponto o amor não é apenas a idealização de um outro e de nós mesmos? E uma coisa é o amor, outra a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama, não estarão de fato quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam.”
Na casa do escritor (na zona histórica de Lisboa), previsivelmente, os livros são como heras galgando paredes e ameaçando os quadrados e retângulos dos quadros do pintor português Júlio Pomar, seu amigo do peito. A morte de Ivan Ilich, de Tolstói, Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, Tchekhov, Cortázar, Katherine Mansfield, Bulgakov, Bioy Casares, Lezama Lima. Hoje em dia, Lobo Antunes – que continua escrevendo a mão – está afastado de qualquer mundanismo social. Praticamente não tem entretenimentos ou lazeres: não frequenta concertos, nem espetáculos, não sai à noite nem visita bares, não vai a lançamentos, nem a festas nem a regabofes literários. Segue fervorosamente a divisa: a writer writes. É verdade que aprecia o futebol (é torcedor roxo do Benfica: “Sofro horrores com esse time!”), mas não gosta de comer nem de beber. De vez em quando, dá um passeio a pé. Aonde vai? Às livrarias, claro. Acorda muito cedo e cerca de onze da noite já está na cama.
Confessa-se sem nenhum “sentido prático da vida”, talvez para compensar o seu sentimento trágico da vida – título de um influente ensaio do espanhol Miguel de Unamuno, que o escreveu pensando mais nos portugueses do que nos seus conterrâneos. Na infância e adolescência, ouviu a mãe comentar muitas vezes: “Tão inteligente para umas coisas e tão besta para outras.” Durante anos a fio, quando Antunes ia ao supermercado as filhas o acompanhavam sempre, porque ele nunca sabia o que deveria comprar. “Toda a vida elas me olharam como se eu fosse um inválido.” Não sabe fazer um café nem um ovo cozido. Aliás, alimenta-se como um carro que para numa bomba de gasolina. “Não me interessa o prazer da mesa. Poderia comer a mesmíssima coisa durante uma semana. José Cardoso Pires, um verdadeiro gourmet, gemia: ?Como posso ser amigo de um homem que gosta de comida de avião?'” E é a pura verdade: aprecia não apenas a comida de bordo como “aquele ritual”. Coerentemente, também gosta do McDonald’s. Mas curte mesmo seus gatos, que se esgueiram furtivamente pela casa, com as caudas em ponto de interrogação pincelando os móveis.
É que Lobo Antunes vive da literatura, para a literatura e pela literatura. “Se um dia não escrevo, sinto-me como se não tivesse tomado banho. Escrever é como uma droga. Começa-se por puro prazer e acaba-se por organizar a vida como os drogados, em torno do vício.” Uma dependência que pode ser gratificante e dilacerante: “Aos quinze anos descobre-se que há uma diferença entre boa e má escrita, aí começa o teu desassossego, mas entre os vinte e os vinte e cinco compreendes a diferença entre a boa escrita e a obra de arte, aí a angústia é completa e nunca mais acaba. É sempre o mesmo, nunca se está seguro do seu trabalho, nunca se sabe se é bom ou não.” A devoção de Antunes à sua obra é tanta que justificou o seu único envolvimento direto com a política. Nos anos 80, foi candidato ao Parlamento pelo Partido Comunista Português – não por convicção ideológica (longe disso), mas porque somente os críticos literários ligados ao PCP tinham elogiado seus primeiros romances. Nunca mais repetiu a experiência: “Não gosto da disciplina de nenhum partido e a do PCP era horrível. A maioria dos políticos são pessoas odiosas, que gostam dos substantivos abstratos.”
Ao longo dos seus até agora 31 volumes, a obra de Lobo Antunes evoluiu no sentido de uma decantação quase alquímica da linguagem, do nó entre a expressão, a memória e o inconsciente do autor. Para inúmeros leitores, seus romances foram se tornando cada vez mais herméticos – embora continuem vendendo como pipoca em matinê. Claro que Antunes, como qualquer artista amadurecido e ainda por cima consagrado, confia no seu taco. Quando um ou outro leitor mais perplexo lhe pergunta afinal de que trata determinada obra sua, ele cita infalivelmente a réplica epigramática de um escritor português do século XVIII, D. Francisco Manuel de Melo: “O livro trata do que está escrito nele.”
Os dois primeiros títulos de Lobo Antunes – Memória de elefante e Os cus de Judas – são aqueles em que os seus temas ubíquos (o trauma da guerra e a perda do seu grande amor) despontam de modo mais explícito e autobiográfico. “Quando foi que eu me fodi?”, interroga-se o psiquiatra-protagonista-narrador de Memória de elefante, numa queixume que lembra outro, praticamente igual, do protagonista de Vargas Llosa em Conversa na catedral.
Já em Conhecimento do inferno e Esplendor de Portugal o autor inaugura outro ciclo, etiquetado como “epopeia lírica”. Passa a interessar-lhe menos o enredo do que a linguagem, menos a narrativa do que a expressão. “Creio que Dumas tinha razão quando dizia dos seus livros que a intriga era apenas o prego onde se pendura o quadro.” Por outro lado, Antunes censura em James Joyce precisamente a pirotecnia linguística: “A pirueta pela pirueta, o mostruário fantástico de uma imensa capacidade de invenção verbal, fica um pouco no vazio, porque não ajuda a história no sentido da eficácia narrativa.” Bem, felizmente há livros mais inteligentes dos que os seus autores.
Em seguida, assoma a “trilogia sobre a morte” (que o escritor prefere chamar de “O Ciclo de Benfica”, o bairro onde moravam os seus pais e onde passou a infância): A morte de Carlos Gardel, A ordem natural das coisas e Tratado das paixões da alma. Este último foi escrito durante uma estadia de Lobo Antunes em Berlim, onde era vizinho do compositor italiano Luigi Nono e da sua mulher Nuria Schonberg, filha de Arnold Schonberg. Por causa do verão excepcionalmente tórrido, Antunes escrevia completamente peladão.
Pouco a pouco, Lobo Antunes urde uma construção polifônica, engastada numa estrutura contrapontística, que enreda e escoa múltiplas marés de tempo, espaço, vozes. Introduz parágrafos que começam com letras minúsculas, monólogos interiores, narradores sobrepostos, confluência da realidade com o delírio, o sonho e a vigília. E as proverbiais metáforas tornam-se mais crípticas, até abstrusas: em Manual dos inquisidores, uma luneta é descrita como “um tubo de inventar planetas.” O tom geral é de claustrofia e paranoia, como um labirinto hermeticamente fechado ou a famosa escada de Penrose, que, ligada a si mesma, nunca cessa de subir e descer. A leitura dos romances de Lobo Antunes exige cada vez mais esforço do leitor. Por vezes, nos sentimos a avançar através de um pântano com lama até à cintura – e, no próximo capitulo, tem areia movediça à nossa espera… Há títulos que deveriam vir com um GPS.
Os romances mais recentes expurgaram os adjetivos, as imagens, as comparações. No final do ano passado, lançou um novo título: Não é meia-noite quem quer, que se desenrola em três dias, cada um com dez capítulos. A protagonista é uma cinquentona e uma encarnação da lei de Murphy: já não tem um seio, o irmão mais velho se matou, o mais novo é surdo-mudo e o pai um cachaceiro, a casa dela vai ser vendida por uma mixaria e o suicídio já parece uma alternativa simpática…
O autor diz que escreveu o livro a ouvir uma voz feminina, que lhe ditava as coisas tão depressa que ele por vezes mal a acompanhava, e durante a escrita só queria estar com ela, para ela. Lançou a obra no festival literário Escritaria, na cidade de Penafiel, no norte de Portugal. Todo mundo ficou embasbacado, pois esse Lobo truculento foi um docinho de côco – chegou até a declamar poesia na rua, para a galera que o acompanhava: “Agarrem aí um Álvaro de Campos!”
Há um mês, verteu o ponto final em mais um romance, que será publicado em 2014 e já tem nome: Caminho como uma casa em chamas. Numa crônica na revista Visão, sugestivamente intitulada Adeus, anunciou que estava pendurando as chuteiras enquanto romancista. “O meu trabalho está praticamente terminado. Após isso (o novo romance), ninguém mais lerá uma palavra posta por mim num pedaço de papel. Escrevi os livros que queria, da maneira como queria, dizendo o que queria: não altero uma linha ao que fiz e, se me dessem mais cem anos de vida em troca deles, não aceitava. Era exatamente isso que ambicionava fazer. Não escrevi a fim de trazer paz a ninguém. Não me interessou agitar bichos de pelúcia diante de pessoas adultas. Há uns dez dias acabei o último. É a mão que escreve mas o corpo paga caro, e o cansaço físico de cada dia de escrita é imenso. Olho o monte de páginas que ficará no meu lugar na paz de um campo que tratei sozinho: resta-me voltar para casa e fechar a porta.”
Como o mundo é pequeno, o americano Philip Roth (com quem o português partilhou tantas listas de favoritos ao Nobel) anunciou sua aposentadoria literária precisamente na mesma semana. Tudo bem: em Portugal há quem duvide que esse Lobo deixará de rondar suas musas-Chapeuzinhos Vermelhos. Afinal, para ele escrever é respirar. Olhos nos olhos da fera, também não ponho minha mão no fogo por esse ponto final (leva mais jeito de ponto e vírgula).
Em 2007, diganosticaram a Lobo Antunes um câncer nos intestinos. Desde então, dizem que ficou mais mansinho (apesar de, às vezes ainda pensar em suicídio). O arranca-rabo com os militares suscita dúvidas sobre essa tal nova docilidade. Mas quem sabe? Talvez agora, se alguém gritar “É o Lobo, é o Lobo!”, já ninguém sairá correndo nem chamará os caçadores (nem os órfãos de Saramago). Já era tempo de deixá-lo em paz com sua guerra. Afinal, ele sabe onde pisa: “Tenho a sensação de que escrevo coisas maiores do que eu. Porque se o que faço é muito bom, então estou adiantado em relação ao meu tempo e nem toda a gente pode me compreender.” Ora, então vai ver que foi por isso que Deus fez os palermas.
* Paulo Nogueira é escritor e crítico, autor do romance O amor é um lugar comum.