“A partir deste momento, pedimos aos passageiros que desliguem seus aparelhos eletrônicos, mesmo aqueles que possuam modo avião, afivelem seus cintos de segurança e mantenham os encostos de suas poltronas na posição vertical.”
Ao som de música alta, modelos esvoaçantes correm pelo campo, nas telas atrás do encosto de cada poltrona, vendendo a nova coleção de uma grife feminina que exalta a nostalgia de um ideal de vida hippie, quando flores na cabeça, vestidinhos brancos e pés descalços nada tinham a ver com o comércio de roupas.
“A (nome da companhia aérea) dispõe de um moderno serviço de entretenimento com telas touch screen para o seu conforto a bordo. Nossos comissários estarão disponibilizando gratuitamente fones de ouvidos para os passageiros interessados.”
No mesmo volume de som, a propaganda de um empreendimento imobiliário com título de nobreza se sobrepõe à da grife feminina, enquanto nas telas touch screen atrás das poltronas desfilam não mais modelos com flores na cabeça mas imagens dos terrenos de até 5 mil metros quadrados do loteamento de luxo à beira de uma represa, com hípica, iate clube e quadras de tênis.
Um passageiro chama a aeromoça e pergunta se seria possível abaixar um pouco o som, para que ele possa ler (o que vem tentando fazer com dificuldade desde que entrou no avião). Como se proferisse uma lição de civismo a uma excrescência individualista, a aeromoça responde: “O senhor não é o único dentro desta aeronave. Outros passageiros podem estar interessados nas informações que temos para dar. Pode não parecer, mas estamos numa democracia”. O passageiro retruca: “Desculpe, mas paguei a passagem. E, se distribuíram fones de ouvido, que ouça só quem quiser”. A aeromoça, irritada e agora como se tivesse sido ofendida pessoalmente, apela: “Por enquanto, ainda estamos transmitindo as instruções de segurança, que todos os passageiros devem ouvir. São as regras da companhia e da Anac”.
Uma colega passa por ela e pergunta qual é o problema. A aeromoça responde: “O passageiro está incomodado com as normas de segurança. Diz que está querendo ler”. A outra levanta os olhos para o céu, em busca do auxílio divino (já que sua paciência está por um fio), e segue para o fundo do avião.
Terminada a publicidade do empreendimento imobiliário, o comissário retoma as “instruções de segurança”: “Para desfrutar de um mundo de distrações e jogos, basta tocar a tela touch screen. Nosso voo conta ainda com o patrocínio dos bombons (marca de chocolate). Hoje, estaremos sorteando três caixas dos bombons (marca de chocolate), com uma variedade de chocolates amargo e ao leite. No bolso da poltrona à sua frente, os senhores poderão encontrar também uma lista dos produtos de beleza (marca de cosméticos). Até o final do nosso voo, também estaremos sorteando uma nécessaire com alguns dos melhores produtos (marca de cosméticos), como o gel de banho e o creme hidratante que deixa suas mãos macias e sedosas. Dentro de instantes, estaremos servindo nosso lanche, hoje com sanduíche de queijo branco, peito de peru e pão sem glúten da (marca de pães). Além da versão sem glúten, os pães (marca de pães) disponibilizam uma variedade de opções para você e sua família nos melhores supermercados das cidades que compõem a nossa rede de destinos em todo o Brasil. Consulte os detalhes em nossa revista de bordo. O queijo light (marca de laticínios) usado em nossos sanduíches é próprio para uma dieta equilibrada e natural, com lactose reduzida. Como sobremesa, vamos estar servindo barras de cereais (marca de barra de cereal) nos sabores pudim de leite ou goiabada. Os produtos (marca de barra de cereal) dão a energia que você precisa para enfrentar os desafios do dia a dia.”
O som de uma nova propaganda de jeans, sempre aos brados, toma a cabine do avião, agora com modelos femininos tocando guitarra e bateria em bandas de rock, nas telas touch screen.
“Para acompanhar seu lanche, estaremos servindo refrigerantes (marcas de refrigerantes) e sucos (marca de suco) de laranja e maracujá diet. O suco (marca de suco) patrocina o projeto (nome do projeto), que vem descobrindo e formando jovens atletas em comunidades carentes por todo o Brasil. Nós, da (companhia aérea), também acreditamos num país melhor e por isso pedimos que os passageiros contribuam com o que puderem para a campanha (nome da campanha) de auxílio às crianças deficientes. Os envelopes para as contribuições podem ser encontrados no bolso da poltrona à sua frente. Basta colocar sua contribuição no envelope e entregá-lo fechado, na saída, a um dos nossos comissários.”
Como não é possível ler, o passageiro fecha o livro e os olhos, mas o que lhe vem à cabeça são só as imagens de um ídolo da cultura popular ex-vegetariano vendendo carne de boi e de propagandas de resorts na selva amazônica, que se alternam num ritmo frenético, como um pesadelo. Quando ele abre os olhos, o lanche já foi servido e o sorteio já começou: “Os sorteados dos bombons (marca de chocolate) são as cadeiras 4B, 21D e 12F! O sorteado da nécessaire (marca de cosméticos) é a cadeira 15A”. Ouve-se uma exclamação de felicidade vindo da cadeira 15A, seguida de congratulações. “A (nome da companhia aérea) se orgulha de ser a transportadora oficial do (campeonato esportivo). A (nome da companhia aérea) sabe que voar é uma escolha e lhes agradece por terem escolhido a (nome da companhia aérea). Estamos iniciando nosso procedimento de descida para o aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A partir deste momento, pedimos aos passageiros que desliguem seus aparelhos eletrônicos e retornem o encosto de suas poltronas à posição vertical. Por razões de segurança, mantenham os cintos afivelados até o completo estacionamento da aeronave etc.”
O aviso referente ao cinto de segurança continua aceso e a aeronave ainda não parou completamente, mas os passageiros já estão em pé, se espremendo para ver quem sai primeiro do avião, ao som de xilofones, sinos, grilos, assobios, marimbas e trinados dos celulares. O passageiro se lembra de uma antiga propaganda anticomunista, na qual o comunismo era representado por um mundo onde tudo era igual e cinza (e tristíssimo), porque nada tinha nome, ao contrário do mundo capitalista, onde tudo era colorido e feliz, graças às diferentes marcas. Por ser uma excrescência de egoísmo e individualismo, em vez de entregar o envelope com sua contribuição às crianças deficientes, ele ainda pensa em reclamar com a aeromoça na porta do avião. Mas o bom senso fala mais alto e o passageiro sai calado.