No dia 25 de dezembro de 1964 nascia, de maneira curiosa, no Rio de Janeiro, o último salão literário do Brasil. Curiosa porque, contradizendo as vaidades que costumam alicerçar esse tipo de agremiação, o Sabadoyle surgiu de um acaso: foi quando, no dia de Natal, Carlos Drummond de Andrade telefonou ao amigo e bibliófilo Plínio Doyle, pedindo-lhe para fazer uma consulta na sua biblioteca.
Não houve rabanada que impedisse Doyle, apaixonado por doces, de receber o poeta no final da tarde daquele dia em que o mundo pensa mais em festa do que em livros.
Verdadeiro homo cordialis, respeitado e amado por pesquisadores do Brasil e do mundo, Plínio Doyle começou sua prática de colecionador de maneira não menos casual: lendo um livro de Machado de Assis, de quem seria, por toda a vida, leitor devotado, encontrou referência elogiosa a uma peça de José de Alencar intitulada Mãe. Passou, então, a procurar a obra nos sebos do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e morou a vida inteira. Sem sucesso na busca para compra, acabou lendo a peça na Biblioteca Nacional, mas continuou a frequentar os sebos da cidade. Nasceu aí o bibliófilo, que vinha se somar ao advogado bem-sucedido.
A visita de Drummond no dia do Natal foi tão agradável que no sábado seguinte lá estava novamente o poeta. Aos poucos, a ele foram-se juntando outros escritores, seduzidos pelos mesmos atrativos: os livros, a boa conversa e o carisma do anfitrião. As reuniões, despretensiosas e informais, continuaram a se realizar todos os sábados. Eram apenas as “reuniões na casa do Plínio”, até que, dez anos depois, o poeta Raul Bopp, que passara a fazer parte do grupo, cunhou o neologismo Sabadoyle para designar os encontros, aos sábados, na casa de Plínio Doyle.
Grêmio literário? Academia paralela? Pasárgada literária, como quis Joaquim Inojosa? Cercle choisi, como pensou o prof. Mário Carelli? Ninguém melhor que Drummond, o fundador involuntário, para definir as reuniões “em que se esquecem preocupações e tédios, no exercício desta coisa que se vai tornando rara ou impossível na cidade de hoje: a conversa — a pura, simples, fantasista, descompromissada conversa entre amigos e desconhecidos ou mal-conhecidos, que se tornam amigos por força das aproximações aqui estabelecidas” – escreveria o poeta.
Atraídos pela boa conversa aí foram assíduos, além de Drummond, Pedro Nava, Mário da Silva Brito, Paulo Berger, Homero Senna, Cyro dos Anjos, Homero Homem, Américo Lacombe, Alvarus, além dos bissextos, como Di Cavalcanti, Rachel de Queiroz, Mario Quintana, e dos visitantes estrangeiros.
Difícil seria imaginar que Plínio Doyle, amante do documento e dedicado colecionador de manuscritos, deixasse escapar registro do que acontecia em sua biblioteca todos os sábados. Assim, em 1972 ele instituiu a prática de se fazer uma ata em cada reunião. Escritas em livro grande, de capa branca, feito sob encomenda, as atas, redigidas antecipadamente por participantes do grupo, homenageavam um escritor, uma obra, ou tratavam de outro assunto relevante.
No Natal daquele mesmo ano de 1972, coube a Drummond fazer a ata inaugural, em que se lê:
Dezembro, 23. Pelas estantes
Flui um rumor de vozes dialogantes.
Esta, indecisa, em tom desconfiado,
é, vê-se logo, do bruxo Machado:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
“Não sei, Mestre, responde-lhe Dirceu
(o de Marília). Vale perguntar
ao nosso prezadíssimo Alencar.”
“Também não sei. Vidrado em Iracema,
só penso nela, que é o maior poema.”
“Perdão, protesta Rosa, pois enfim
joia, mas joia mesmo, é Diadorim.”
Os registros seguiram implacáveis, até que, em 1983, chegou o sábado de se fazer a ata n. 500, cuja autoria foi dada ao anfitrião e a Drummond. Plínio Doyle apresentou uma bem-humorada estatística do número de biscoitos e cafezinhos consumidos durante as reuniões, e Drummond, mais uma ata-poema:
500 tardes… Plínio recebendo
com o mesmo jeitão paciente gregos e goianos:
o vasto bigodudo que vem da Bahia,
o douto sociólogo que vem de Brasília,
o vago poetinha que vem de Deus-me-Livre
e traz na algibeira um infame poema
que não ousa mostrar.
Quanto a mim, conheci Plínio Doyle em 1991, quando cheguei ao Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa para fazer pesquisa sobre Ribeiro Couto, cujo acervo havia sido coletado por Francisco de Assis Barbosa e confiado à Casa. Sem a organização adequada, os documentos ainda não se encontravam disponíveis para consulta naquela época. Mesmo assim, continuei a ir lá. Além de ter outros temas para investigar, eu queria mostrar que não desistia de Ribeiro Couto.
Uma vez ou outra, quando Dr. Plínio entrava, eu ia até sua sala, informava-lhe sobre o andamento da pesquisa geral e depois saía, triste por não ter acesso ao arquivo do autor de Cabocla. Passou-se um ano até que ele me chamasse para dizer que eu podia examinar o acervo de Ribeiro Couto. Era uma exceção. Exceção que ocultava lá seus interesses. É que em maio daquele ano de 1993 fazia trinta anos da morte do poeta-embaixador e dr. Plínio então convidava-me para redigir a ata de homenagem. Ora, eu conhecia a tradição do Sabadoyle, e fiquei intimidada com a ideia de me apresentar lá, mas eu mesma não admitia a covardia de recusar o convite.
Comecei a redigir a ata. Ao mesmo tempo, lia o livro de Homero Senna, História de uma confraria literária: o Sabadoyle, que, em 2000, seria reeditado pela Casa da Palavra com o título: O Sabadoyle: histórias de uma confraria literária. Assim, ao chegar ao lendário salão, eu já sabia exatamente onde estava pisando.
Ali encontrei a atmosfera fraterna descrita por Homero Senna, que se tornaria meu querido amigo. Nunca mais deixei de ir ao Sabadoyle. Costumava brincar com o Dr. Plínio dizendo que ele levara um ano me assuntando, antes de me convidar para aderir ao grupo. Ele contestava, rindo, mas a verdade é que me observou longamente para só depois fazer a convocação.
Estava certo Vinicius quando disse que “a vida é a arte do encontro”. Meu encontro com Plínio Doyle foi muito feliz. Se, num sábado, por alguma razão, eu telefonasse de manhã avisando que teria um almoço mais longo naquele dia, e por esse motivo não iria à reunião, ele insistia para que eu desse um jeito de chegar, ainda que fosse no final da tarde. E eu dava o jeito mesmo.
As reuniões eram marcadas pelo respeito, mas um respeito alegre, destemido. Quantas vezes detive-me a observar aquele homem de noventa anos, admirando-lhe a autoridade fraterna. Como era forte a sua presença! Em nada a limitação física – usava bengala – lhe diminuía a força. Pelo contrário, compunha-lhe a figura de patriarca, de “Patriarca em Flor”, na expressão feliz e, para mim, definitiva, de Antônio Carlos Villaça.
Muitos tentaram defini-lo: Plínio o Jovem, disse um; Plínio o Bom, chamou outro; Abade da confraria, ensaiou alguém; Pedro Nava nomeou-o Bâtonnier; e houve até mesmo quem o chamasse de Babalorixá.
Independentemente do título, o anfitrião mantinha um olhar zeloso durante as reuniões. Atentíssimo, ele ouvia as leituras das atas, feitas habitualmente às cinco horas, precedidas de cafezinho e biscoitos, já cantados em prosa e verso. A troca que se fazia entre os sabadoylianos era divertida e rica, e o despojamento, uma marca vigorosa do salão. As vaidades individuais encolhiam-se por falta de plateia. Reinava um espírito muito singular. Conversava-se sobre qualquer assunto, em grupos de três, quatro pessoas que se aproximavam pelas afinidades naturais.
Assídua, como já declarei, pude presenciar situações curiosas. Uma delas foi na reunião em que se homenagearia San Tiago Dantas. Nessa tarde, contou-se com a presença de Edméa de San Tiago Dantas, viúva do professor e político. Sentada perto de mim, ela aguardava, solene, o início da programação. Certamente esperava um discurso ou outro tipo de pompa, e como as pessoas chegassem descontraídas e começassem a conversar dentro da mais absoluta espontaneidade, a senhora inclinou-se para o meu lado e sussurrou: “Que horas começa esse negócio aqui?.” Voltando-me para ela, respondi, no mesmo tom de voz: “Esse negócio aqui já está começado”. Ela riu, entendendo de imediato que a simplicidade só permitia a leitura da ata, os biscoitos e o cafezinho.
Situação atípica aconteceu de uma outra vez, com a visita do editor Massao Ohno, que, chegando de São Paulo, seguiu direto para a casa de Plínio Doyle. Ao entrar, e depois de cumprimentar o anfitrião, dirigiu-se ao escritório, sala menor e mais íntima da casa. Sentou-se à escrivaninha do amigo, abriu a bolsa de viagem, tirou uma garrafinha de uísque e convidou mais uns três amigos que estavam na mesma sala para acompanhá-lo.
Como perfeito anfitrião que era, Plínio Doyle deixou que os visitantes permanecessem em seu escritório, ainda que não escondesse um certo desapontamento: gostava de ver todos no salão onde costumava receber os que o visitavam. Mas o amigo tinha decidido permanecer na outra sala… Paciência!
Por volta das 19h30, quando a maioria dos presentes já tinha ido embora, Massao voltou à sala de visitas, sentou-se na cadeira ao lado do anfitrião e deu-lhe um afetuoso e estalado beijo na face. Plínio Doyle, sem jeito, circunspecto, inclinou a cabeça para a frente, reverenciou o visitante e pronunciou um educadíssimo “muito obrigado”.
Por mais que a demonstração afetiva de Massao lhe fosse incomum, recebeu-a com a sua insuperável capacidade de entender os amigos. Compreendeu a espontaneidade do gesto amoroso. Olhou Massao com doçura. Sua fisionomia era toda compreensão, amizade. Havia uma ternura imensa no olhar de Plínio Doyle. Reconhecia a amizade e entendia — é preciso que se diga — o efeito do uísque.
Massao, então, levantou-se e permaneceu alguns minutos de pé, em frente ao amigo. Enquadrou-lhe o rosto com as mãos, como se o estivesse dispondo no visor de uma câmara fotográfica. Observava a beleza de sua ternura, aos 91 anos de idade: – “Eu amo esse homem” —, disse Massao Ohno, segurando a cabeça de Plínio Doyle. Mais um beijo, despediu-se, e saiu.
“Tal amor, tal vida” é o que eu diria, citando Murilo Mendes, como síntese da pessoa de Plínio Doyle. É assim que eu definiria esse homem cuja vida foi extensão do seu amor ao livro.
* Lista completa de pessoas na foto em preto e branco; da esquerda para direita, em pé: Péricles Madureira de Pinho, Severo da Costa, Maximiano de Carvalho e Silva, Homero Homem, Peregrino Júnior, Esmeralda Doyle, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Inojosa, Bernardo Élis, Jesus Belo Galvão, Américo Jacobina Lacombe, Paulo Berger, Mário da Silva Brito, Olímpio Monat; sentados: Fernando Monteiro, Raul Lima, Álvaro Cotrim, Sonia Doyle, Gilberto Mendonça Telles, Plínio Doyle, Murilo Araújo, Rita Moutinho Botelho, Alphonsus de Guimarães Filho, Horácio de Almeida e Raul Bopp.