Sangue azul e Romance policial: a paisagem como drama

No cinema

05.06.15

Filmar em locais muito belos e imponentes pode ser uma temeridade. A menos que se integre organicamente a paisagem física ao drama humano que ali se encena (como fez Murnau em Tabu, Rossellini em Stromboli ou Visconti em La terra trema), corre-se o risco de cair numa beleza ilustrativa de cartão postal ou de National Geographic.

Dois filmes que estão entrando em cartazenfrentam esse perigo com brio e, a meu ver, saem-se muito bem. Refiro-me a Sangue azul, do pernambucano Lírio Ferreira, e a Romance policial, do chileno-brasileiro Jorge Durán. O primeiro foi rodado em Fernando de Noronha. O segundo, no deserto do Atacama, no Chile. Coincidentemente, ambos têm como protagonista o ótimo Daniel de Oliveira.

Como, à parte isso, são filmes radicalmente distintos, vamos comentar um de cada vez, começando por Sangue azul. Ali, Daniel de Oliveira é Pedro, ou melhor, o homem-bala Zolah, astro do circo que chega a uma paradisíaca ilha vulcânica perdida no meio do Atlântico.

O detalhe é que ele saiu dali com o circo aos nove anos, deixando para trás a mãe (Sandra Corveloni), a irmã (Caroline Abras) e o amigo de infância Cangulo (Rômulo Braga). Vinte anos depois, sua volta, bem como a efervescência do circo, vai agitar a tranquilidade local, atiçando desejos, ciúmes, rancores e, no fundo de tudo, uma insinuação de incesto.

 

Fios paralelos

Não cabe entrar aqui no enredo propriamente dito, que, como costuma acontecer nos filmes de Lírio Ferreira, espalha-se em inúmeros fios paralelos, a ponto de o espectador quase esquecer, às vezes, qual é a história que está sendo contada. Em Sangue azul, todos os personagens têm sua oportunidade de ganhar o primeiro plano em algum momento, do chefe do circo Kaleb (Paulo Cesar Pereio) ao atirador de facas Gaetan (Matheus Nachtergaele), da dançarina Teorema (Laura Ramos) ao velho homem do mar Mumbebo (Ruy Guerra), do hercúleo Inox (Milhem Cortaz) à beldade local Jandira (Brenda Lígia).

Há cineastas que trabalham no rigor e na contenção (penso em Ozu, em Bresson) e há os que se entregam quase sem freios ao prazer do espetáculo visual, ao gozo da criação de imagens. Lírio Ferreira, obviamente, faz parte do segundo grupo. Não por acaso, uma de suas inspirações fundamentais é Orson Welles.

 

Eros onipresente

Sangue azul, por momentos, se perde nessa exuberância. Eu quase dizia “nessa orgia”, pois é de orgia que se trata: em poucos filmes o sexo, como força incontrolável de criação e destruição, esteve tão presente. Não tanto pelas inúmeras cenas de coito (hetero, homo, grupal…), mas pela própria sensualidade das imagens – de corpos humanos, mas também da natureza, dos bichos e das coisas. Numa conversa com crianças na praia, o velho Mumbebo, ao contar a origem mítica da ilha, explicita esse sentido erótico da paisagem, ao qual poderíamos acrescentar o dos objetos, em especial o canhão, as facas e garrafas, em sua potência fálica.

 


Daniel Oliveira e Caroline Abras em cena de Sangue azul

É em Eros, portanto, que o filme de Lírio Ferreira encontra sua unidade, a despeito de sua dispersão intrínseca, acentuada pelo pendor intertextual do diretor, que homenageia, por exemplo, a chanchada (nas cenas de Costinha na TV) e o Cinema Novo (no reencontro entre Ruy Guerra e Pereio, meio século depois de Os fuzis), sem falar na música popular (a ciranda de Lia de Itamaracá, o canto para Iemanjá, o samba de Batatinha) e no futebol, outras paixões do cineasta. Além, claro, do próprio circo, um espetáculo em si mesmo dentro do filme, “ilha dentro da ilha”.

Onívoro, irregular, generoso e desmedido, misturando gêneros e texturas, mudando de ritmo e de tom a todo momento, assim é o cinema de Lírio Ferreira. Compra-se o pacote todo ou lamenta-se a sua imperfeição.

 

Romance policial

O filme de Jorge Durán é outra história, bem diversa. Aqui, desde o título, somos introduzidos numa narrativa de gênero, com as balizas e códigos que o caracterizam. Tudo é visto de um único ponto de vista, o do jovem escritor e funcionário público Antonio (Daniel de Oliveira), que vai ao Atacama em busca de vivência e inspiração para escrever um livro. Ele é também o narrador, numa locução em off que remete à tradição do noir.

Como é de praxe no gênero, ocorre um assassinato, do qual Antonio é o principal suspeito, e tudo parece conspirar para sua condenação. Ao mesmo tempo em que tenta provar sua inocência, ele quer descobrir o verdadeiro culpado e a causa do crime, com a ambígua ajuda de uma mulher (Daniela Ramírez) com quem se envolve.

Nesse arcabouço narrativo clássico, Durán, veterano diretor e roteirista, introduz elementos muito pessoais: uma reflexão sobre a construção (e deformação) da memória, o entrelaçamento do destino individual com a história coletiva, o jogo entre ficção e realidade e, não menos importante, uma utilização dramática do espaço físico em que ocorre a ação.

Num escrito breve de Borges, fala-se do deserto como o mais terrível dos labirintos, pois dele não há como escapar. Essa ideia parece nortear Romance policial, pois Antonio é confrontado com a sensação de aprisionamento num espaço infinito. Seu drama é saber que não poderá escapar se não desvendar o mistério do crime. Este será o seu fio de Ariadne. Apesar da fragilidade e confusão de certos flashbacks, é um belo filme, decerto o melhor de Durán em muitos anos.

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