O IMS-RJ exibe, de 27 de maio a 11 de junho, seis filmes da diretora durante a Mostra Ana Carolina, incluindo o mais recente, “A primeira missa ou tristes tropeços, enganos e urucum”. A cineasta comenta neste artigo sua trajetória e o que a move para realizar seus trabalhos.
Com humor é sempre possível, e necessário, dar dois ou três passos para trás para realizar um salto significativo. A primeira missa não é um filme histórico! É um filme que se propõe a contar um aspecto da natureza brasileira. De nós mesmos. Ficamos dando voltas no mato sempre falando do mesmo assunto – “precisamos melhorar as leis, precisamos melhorar a educação, precisamos melhorar o meio ambiente…”. Prefiro me deter sobre o que não sei e sobre o que me incomoda. Por exemplo, o cinema brasileiro é como um besouro: besouro não pode voar, mas voa. Passo a estudar esse assunto (“o besouro que voa”). Assim comec?a o processo para chegar a um novo filme. Fico conversando com as “forças infinitas e ocultas” que existem nos temas dos meus filmes. E isso envolve o percurso inacredita?vel de, passo a passo, atravessar a realidade brasileira várias vezes – pois todos os temas têm de, obrigatoriamente, esquadrinhar a realidade brasileira. Então, nesse processo de pesquisa sobre a nossa realidade, vão se coagulando aqui e acolá informações disparatadas até que um dia – Eureka! – a dramaturgia te empurra e cai a ficha. Esse é o caminho de todos os processos criativos. Um filme nasce assim: Faz de conta que estamos na Mata Atlântica. Faz de conta que por aqui passa um rio. Faz de conta que o Brasil prospera. Isso é cinema. Cinema é ilusão!
E assim como A primeira missa não é um filme histórico, Gregório de Mattos não é uma biografia do poeta. Filmei algumas de suas poesias dramatizadas como representações fugazes de sua vida. Originalmente iria chamar-se Gema a quem gemer, ou o pouco que se sabe sobre Gregório de Mattos, mas, como esse título é obviamente muito literário, optei por usar somente o nome do poeta. A verdade verdadeira é que, se nos dedicássemos realmente a ler suas poesias, o conheceríamos melhor do que muita gente que convive diariamente conosco. Tudo isso para dizer que Gregório de Mattos foi ele mesmo uma ficção.
Meus filmes são memórias das sensações que me levaram a realizá-los. O que nós, civilizados, do alto do nosso conhecimento, chamamos de linguagem, na verdade não é linguagem. Passou a ser, mas não é. São expressões da alma humana, expressões tão violentas que se manifestam com o que você tiver à mão.
Uma vez dei uma explicação ininteligível, mas absolutamente lógica: Eu estava numa caixa de concreto. Por um movimento brusco, um lado da caixa de concreto se abriu. Na verdade, foi o seguinte: alguém me deu um brinquedo para eu contar uma coisa do meu jeito, o cinema. Eu não consigo dissociar Mar de rosas do Getúlio Vargas. O Getúlio aparentemente é um documentário. Mas, quando comecei a ver o material do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), me senti diante do poder, do poderoso. Eu só fiz o Mar de rosas por que vi no material do Getúlio alguma coisa que não me pertence. Eu não filmei nenhum plano do Getúlio, mas percebi nas imagens do Getúlio uma coisa claramente masculina: o pai que protege, que provê, que resolve. E que se mata, o pai que atira contra si mesmo, o pai que não é infalível. Ali uma coisa que me levou a uma discussão descabelada da família: dentro da família, por que meu pai não é infalível? No Mar de rosas a figura proeminente é a mãe. A grande batalha: eu e a outra mulher do meu pai. Quer dizer, no filme, mato a mãe. Não resolve nada porque o pai era frágil e morreu no meio do caminho. Então, o Mar de rosas, na verdade, está travestido de primeiro filme mas debaixo do Mar de rosas tem o Getúlio. Foi o impulso do Mar de rosas. Aí tomei um embalinho, um certo gosto pela parede que se quebrou, pelo concreto que caiu. Fiquei com o braço para fora e comecei a fazer piruetas.
Das tripas coração é ostensivamente, eu acho, uma pergunta obsessiva e arrogante sobre uma questão de identidade sexual. “Olha aqui como eu sou: sou uma mulher gostosa. Sou mulher?” Essa pergunta permanece todo o tempo no Das tripas coração. Das tripas coração é uma grande má-criação, uma grande exacerbação de identidade misturada com um pouco de religião e de repressão. São 11 rolos de 300 metros de um corre-corre: “aposto que você não me pega”. E mais: “aposto que você não sabe quem eu sou”. E não sabe mesmo, porque não paro de correr. Vamos de qualquer jeito, eu não estou entendendo nada, mas vamos de qualquer jeito. Que país é este?
No Sonho de valsa não tem homem. Quer dizer, tem uns homens imaginários. Não são reais. Com o Guido não acontece nada, ele dormiu. Tenho que adormecer o cara para ficar saliente. Sonho de valsa fala das mulheres que fantasiam o amor, o encontro do homem, o romance: “Achei meu homem, ele me ama, eu sou uma mulher incrível, jamais serei abandonada”. Acabou sozinha, vai ter o quê? Reze, se conheça, segure suas pontas, ganhe seu dinheiro. Isso é o Sonho de valsa.
Amélia começa em Paris, 1905. Sarah Bernhardt com sua camareira Amélia. Amélia escreve uma carta para as irmãs em Minas dizendo: “Estou chegando com Madame no Rio de Janeiro dia 13 de setembro”. E aí, sabe?, aquela coisa que a gente nunca sabe o que é? São três irmãs. Chegou uma carta. Tem uma leitura imensa, com um ritmo de Minas Gerais – eu nunca fiz um ritmo desses num filme; é lento, não se grita, não tem confusão. Eu procurei fazer uma “anti-Ana Carolina” nessa cena em Minas. Minas é o meu paradigma de equilíbrio, é o que eu não tenho dentro de mim. É o que eu quero ser quando crescer: quero ser mineira. Eu quero ser tranquila, desconfiada, calma. Mas então, chega uma carta: “Madame? Mas que madame?” Pouco se lixam, e no entanto vão dar de cara com a mulher mais importante e mais conhecida do mundo naquele momento. Viajam para o Rio de Janeiro com uma única instrução para o encontro com a Madame: diante de pessoas importantes elas devem prestar atenção a tudo, fingir que conhecem tudo, fingir que entendem tudo. Fingir, pois o entendimento real é impossível. Elas falam por gritos, berros, pela língua da emoção, que passa a ser a linguagem delas.
Quando falamos de linguagem, estamos falando de um gueto. Estamos quase falando de um hospício. O que segura um filme? Não é a linguagem. É a emoção com a qual você se agarra a esse dialeto, a câmera. Você fica aos berros falando numa língua emocionada para alguém entender. Não é linguagem, mas passa a ser a linguagem. Mas o que segura um filme? Mar de rosas, por exemplo, é como o impulso de uma criança esperneando: “eu quero aquilo ali”. A mãe perguntando: “o quê? O quê?” E a criança repetindo: “aquilo ali, aquilo ali”. O desejo de ser entendido é que segura o filme.
Tenho que fazer uma grande confusão para explicar o que eu quero explicar. É tão difícil escrever uma história com a câmera, é tão difícil conseguir escapar da questão literária, é difícil mesmo. A questão literária para nossa geração é prioritária. Você aprendeu a ler livros, a pensar literariamente, a se expressar assim. Cinema é muito mais difícil. Demorou 20 anos para eu saber quando dizer: “aqui, um travelling; aqui eu paro e espero; aqui eu não grito; aqui eu corto”. No cinema, ponto e vírgula é muito difícil.
Eu tenho uma profunda dificuldade de entender mesmo. Entender o que as pessoas me falam. Entender o que é para ser entendido. As normas, as regras, as legislações, as ações. Tudo para mim é outra língua. A única língua que é minha é o cinema – e é a mais árdua. É uma linguagem deficiente. Do deficiente. A minha única maneira de expressão é o cinema. E eu acho penoso, difícil, fazer cinema. É uma expressão dificílima. Contar uma história, para quem tem dificuldade de entender essa história, é um sacrifício. Eu estou submetida a essa linguagem, eu não consigo falar dela. Assim como eu estou sob a condição feminina, eu estou sob a condição de fazedora de cinema.
Ana Carolina é cineasta.