Como bem observado pelo articulista Antônio Xerxenesky, criar editoras no Brasil é parte de uma patologia (ainda) não descrita no DSM V, mas certamente por uma das muitas falhas do manual classificatório de sintomas da sociedade contemporânea. Em um cenário em que tudo depõe contra, publicar, editar, traduzir e insistir em lançar livros pode ser, como tão bem descreve a filósofa Jeanne Marie Gagnebin no prólogo de Limar, aura e rememoração (Editora 34), resultado das ligações entre escrita, morte e transmissão. Escrevemos por que vamos morrer, escrevemos para não morrer, eis o paradoxo anunciado por Gagnebin que, por analogia, pode ser adaptado ao sintoma da edição: editar por que vamos morrer, editar para não morrer.
A filósofa espanhola Beatriz Preciado
É neste limiar entre sintoma e coragem que está a N-1 Edições, resultado de um acordo com a Aalto University, da Finlândia, e no Brasil a cargo do filósofo Peter Pál Pelbart (PUC-SP). É por esta casa editorial, como dizem os franceses, que chega ao mercado brasileiro a tradução de Manifesto contrassexual, da pensadora espanhola Beatriz Preciado. Seu livro-manifesto data de 2002, é um marco na teoria queer, e sua chegada ao Brasil tantos anos depois também pode ser considerada sinal de muitos sintomas, para ficar no vocabulário psi: do atraso do debate sobre as fortes ligações entre sexualidade e heteronormatividade, de certa forma ainda mantido numa espécie de gueto como se fosse do interesse apenas de uns poucos; de uma política editorial colonizada, seja em relação aos best-sellers norte-americanos, seja em relação ao ideal de elegância intelectual dos franceses; de uma inerente dificuldade de transpor fronteiras acadêmicas quando se trata de discutir problemas de gênero (não uso a expressão por acaso, mas como referência ao livro da filósofa Judith Butler, esgotado logo depois de seu lançamento pela Record, em 2003, e felizmente prestes a ser relançando no segundo semestre).
Preciado é alguns anos mais jovem que Butler, e provavelmente por isso já pode constituir sua obra interrogando alguns dos pressupostos estabelecidos pela norte-americana, principalmente a ideia de performatividade, tão cara aos leitores de Butler. O verbo “provocar” fornece uma chave de leitura para o Manifesto que, à maneira dos manifestos de vanguarda artísticas do início do século XX, pretende propor uma revolução. Dessa vez, o alvo não são as formas artísticas, mas as corporais. Por isso, desde o início o texto se anuncia como um livro “sobre sexos de plástico e sobre a plasticidade dos sexos”, tomando como elemento de análise o dildo, termo originário da cultura sexual norte-americana, que permanece em inglês tanto no original espanhol quanto na versão brasileira.
A rigor, trata-se de uma dessas decisões editoriais difíceis, cujas consequências ainda vão reverberar durante muito tempo. Manter dildo quer dizer reforçar a estranheza de um termo que, transposto para o português como consolo, por exemplo, perderia a ambiguidade do inglês, onde a palavra também designa alguém estúpido ou desprezível. Plasticidade dos sexos é tanto a interrogação da possibilidade de um “sexo natural” quanto um desdobramento da ideia – tomada da filosofia de Jacques Derrida – de suplemento ou prótese de origem. Preciado explica que, se Marx usou o conceito de mais-valia como central na sua crítica ao capitalismo, trata-se de inscrever o dildo como elemento central na sua crítica à norma sexual. Derrida pensou o suplemento a partir da sua crítica à metafísica da linguagem e à hierarquia entre fala e escrita. Preciado, que foi aluna de Derrida, pensa o dildo como um elemento que evoca a noção de suplemento na filosofia derridiana e com isso impede qualquer naturalização de um sexo originário. Foi ao fazer a crítica da tradição filosófica como tendo atribuído à escrita a marca de suplemento – em oposição à fala, esta tida como original – que Derrida abriu caminho para pensar a performatividade de gênero em Butler e plasticidade sexual nos termos de Preciado. Ou seja, é com a noção de suplemento de origem que se abre a possibilidade de questionar uma sexualidade própria e natural, que se oponha à artificial, fabricada como um dildo.
Aqui, sexo e escrita se encontram como suplementos de origem. Quando escrevemos, como diz Gagnebin, “lembramos, mesmo à nossa revelia, que morremos”. Lembramos, portanto, que a vida natural não existe sem os artifícios que nos mantêm vivos, e lembramos ainda o quanto a morte é estranha (embora não surpreendente). Estranho, e infelizmente não surpreendente no mercado editorial brasileiro, é que um manifesto como o de Preciado esteja escondido nas prateleiras das livrarias, seja quase clandestino, e que assim testemunhe um pouco da história da loucura de editar livros no Brasil. Por fim, pode-se dizer que Manifesto contrassexual é um belo livro-objeto, cujo furo que o atravessa desde a capa marca a ideia de uma não-totalidade, seja da obra, da escrita, ou da vida ou da morte.