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Querida Vilma,
como vai de vendaval, vacilou e voou ou vazou veloz?
Ok, ok, sem gracinhas nem piadas com a tempestade Sandy. Encontro-me num enrosco. Nem sei onde estava com a cabeça pra topar esse mailing ao léu. Se há amigos que elogiam nossas trocas de disparates e piparotes, há também quem chie. Um bróder, escritor, múltiplo e bruto, veio me dizer que em minha carta tem muita conversa fiada, agenda da semana demais e vida interior de menos. Que só digo dos fatos do dia – e cartas são territórios noturnos. Intrometido esse amigo, eu sei; um enxerido atrás de fofocas e das tretas que só diria ao meu analista (se eu o tivesse). Mas a culpa nem é dele, é da gente, que fala alto demais. Escritores falam demais de si mesmos?
O fato, dona Vilma, é que minha vida interior adoeceu de notícias. Outro dia sonhei que ia entrevistar o José Serra e descobri que ele estava gravemente doente. Nas últimas, dizendo suas últimas palavras. Mal conseguia falar. Consegui, graças a expedientes esdrúxulos os quais não vale a pena citar, seduzir algumas enfermeiras e adentrei o recinto hospitalar do vampiro tucano. E lá ele estava em sua lívida tumba, arregalado, irremediavelmente careca e cercado de vários tubos de álcool gel. De doer o coração. Sua enfermidade ainda era segredo; ninguém queria me responder que cazzo o ex-ministro estava fazendo no hospital. E esta foi minha primeira pergunta. Ao que Serra me respondeu, apenas com doloroso e intenso olhar, apenas levantando vagarosamente o lençol… que escondia… mas não… não podia ser… Serra escondia uma xoxotinha! Era isso: o tucano havia se internado para fazer uma cirurgia de mudança de sexo, e a coisa deu com as cucuias, por isso ele estava no bico do corvo. Acordei imediatamente, em chamas: preciso ligar pro jornal! Mandar um e-mail para a revista! Tuitar, feicebucar, gritar pela janela! O Serra virou tchutchuca!
Aos poucos, porém, fui caindo em mim (se é que meu ego, das alturas onde vive, deixa isso acontecer) e saquei o ridículo da situação. De novo, tinha acontecido: sonhei com personagens do noticiário. Onde foram parar meus sonhos surrealistas, Vilma? Agora era isso: estava editando uma entrevista que fiz com o Laerte, em que falava sobre seu transexualismo (só que o Laerte não quer trocar de sexo, ele pensa ligeiramente em colocar peitos, tem usado sutiã e vem se habituando à ideia de colocar silicone, mas apenas se trata de uma ideia por enquanto), durante o último debate entre Fernando Haddad e José Serra. Metafísica nenhuma, minha cara. Meu analista (se eu tivesse um) adoraria que eu contasse esse tipo de sonho. É sempre assim: sonho com o juiz Joaquim Barbosa trabalhando como ator em um filme sobre o PCC (no papel de líder), o Thomas Pynchon no elevador dizendo “desce”, a Dilma me alisando no escurinho do cinema (sobe), o Jimi Hendrix trocando o pneu do carro (que eu não tenho nem nunca mais vou ter, depois do acidente), o Neymar em uma sessão de autógrafos perguntando o meu nome… É uma desgraça, Vilma. Minha vida interior virou minha timeline no Twitter.
Enfim, também ando, ou melhor, cavalgo, como o seu Rocinante, muito metafísico, mas deve ser porque não tenho comido ninguém. Dei um tempo na nossa peça e andei escrevendo alguns poemas sobre amores expressos. Nada como um expresso e um pé na bunda para nos empurrar pra frente. Mas agora chega, já deve estar saciada a sede por vida interior da nossa utópica plateia. Quero saber mais de suas aulas californianas (aquela aparição do esquilo intimidador, que conto perfeito, que epifania!). Como tem sido o embate Obama x Romney na academia de Letras?
Quando você responder já poderá me dizer quem ganhou, se o negão ou o neguinho. Estou com medo, Vilma. Acho que o negão deu mole no primeiro debate, parecia meio distraído, sem fome de bola. Acho que o mórmon vai faturar e os EUA vão entrar em outra guerra cretina. Falar em mórmon, outro dia estive falando pra uns alunos lotando uma pequena biblioteca de Vargem Grande Paulista, região metropolitana de São Paulo. Parecia uma missa, havia umas cem pessoas superatentas, queriam saber sobre livros, jornalismo, internet, carreira, universidade, foi exaustivo falar por duas horas sem parar, não sei como vocês professores conseguem. Um garoto me inquiriu, meio cabreiro, por que eu tinha publicado livros com os nomes Infernos possíveis e Céu de Lúcifer – e me sugeriu ler O Livro de Mórmon. Disse a ele que já tinha lido e que eu admirava especialmente, em sua doutrina, a adoção da poligamia, uma prática muito corajosa, eu disse, meio distraído, apesar da grana que deve ser bancar trocentos casamentos, eu mal banco um cinema para uma amiga. Acho que ele não gostou do meu comentário, inadvertido por supuesto, já que, como disse, estava cansado, e se pirulitou. Mas no geral foi muito bacana a palestra, as pessoas pareciam tão interessadas e carentes, e talvez por isso parecessem tão mais vivas do que em qualquer outro lugar. Vivemos em um mundo de mentira, essa zona oeste onde só habitam as figurinhas do Facebook e as memes do Twitter.
Logo depois da palestra, Vilma, conheci um cara cujo filho tinha sido morto por cinco policiais, que se justificaram afirmando que o garoto tinha resistido à prisão. O pai investigou o crime e descobriu que os policiais haviam errado – tinham executado um “suspeito” a sangue frio (o velho papo de “atitude suspeita” que nossa brava PM paulista adora, tem visto os massacres diários na região metropolitana? E a cara de pau do nosso secretário de segurança?) – e os colocou na cadeia (a notícia está aqui). O cara, que trabalhava na prefeitura e por isso estava na biblioteca, me mostrou o braço: ali o rosto do filho, encimando a palavra “Herói”. No que estou te escrevendo isso, uma joaninha veio voando e pousou na tela do meu computador. Não sei o que isso quer dizer. Não sei o que aquela cena quis me dizer. Eu olhava para a tatuagem do homem, olhava para a cara do sujeito que tinha perdido o seu filho. Eu tinha lido a notícia no jornal, mas não sabia que a cara dele era aquela e a cara dele era aquela que me olhava, a cara de quem olhava para a morte todo dia. Saí da palestra esgotado, cansa demais dar aula, cansa demais falar de si mesmo; naquela noite tive um sonho mais estranho que o do Serra. Mas acho melhor guardar pra mim. E a joaninha só pode ser parente do seu esquilo.
Beijo,
Ronaldo
P.S.: Vamos falar mal da capa da Veja toda semana, Vilma? Essa falando mal da maconha é grotescamente ruim. Esqueceram completamente como se faz jornalismo ali.
P.S.2: Aquele meu bróder bruto acabou de operar o umbigo. Deve ser por isso que reclamou que não tenho vida interior. Mas ele está bem, obrigado.
P.S.3: Segue um poema para iluminar (ou turvar) a peça.
À espera da próxima visita
, tenta manter dentro da mente um espaço inabitável
como aqueles carrinhos de montanha-russa que sempre saem vazios
um espaço enigmático feito uma simulação de incêndio
e dentro de você os funcionários descem as escadas em silêncio
então eis você aqui de novo
você e você
absolute beginners
em breve os sinos e os sexos e os cânticos e os gozos
e depois um conhecimento lusco-fusco uma reação extrapiramidal
afinal todo mundo sabe alguma coisa que você não sabe
sim baby moro a uma rua do fim do mundo
e até em casa me sinto visita
traz só vinho pois não quero saber de mais notícias
não quero mais saber de esperar o mar me trazer mensagens
teu espaço inabitável te cochicha
que no fim a gente só arruma a casa pra própria visita
não há airbag contra o amor
e quem joga paciência com o destino sempre capota
sim baby a gente só se encontra mesmo no fim
e quando o fim chega
a gente não sabe mais de onde veio
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* Na imagem que ilustra a home do post: o segundo debate entre Obama e Romney.