A morte e a morte da esperança equilibrista

Colunistas

07.10.15

Em cartaz no Festival de Cinema do Rio, o documentário Betinho – a esperança equilibrista, com direção de Victor Lopes, é um pequeno grande filme. Pequeno, porque toda e qualquer tentativa de dar conta do personagem em que se transformou o mineiro Herbert José de Souza estará sempre aquém da tarefa. Nascido hemofílico no sertão de Guimarães Rosa, na pequena Bocaiúva, criado em torno de presídios, hospitais e funerárias em Belo Horizonte, ator e testemunha de dezenas de episódios políticos marcantes na história do país, Betinho carregou pela curta e intensa vida inesgotáveis paradoxos.

O jovem que nasceu destinado a morrer cedo viveu muito, mesmo tendo partido meses antes de completar 62 anos, vítima de complicações de uma aids à qual sobreviveu 10 longos anos depois de ter enterrado os dois irmãos também hemofílicos. Betinho – a esperança equilibrista também é um grande filme pelo que recupera da militância de Betinho em favor de uma nova forma de exercício democrático ainda não realizado na história da passagem da ditadura militar ao governo civil. Se a hemofilia parece uma condição cada vez mais rara, o mesmo pode se dizer de personagens como Betinho, cuja esperança equilibrista embalou a campanha pela anistia na voz de Elis Regina e nos versos de Aldir Blanc e João Bosco.

“Nós queríamos implantar o socialismo e a justiça social no Brasil. Era só isso que a nossa geração queria”, diz ele a certa altura, em imagens de arquivo muito felizes na captação de um Betinho absolutamente à vontade na sua casa em Itatiaia, tranquilo, seguro, cioso de que fazia ali um balanço final desta combinação vida-obra que o marcara desde sempre. O filme faz lembrar Geração Betinho, livro em que um de seus melhores amigos, Luiz Alberto Gomez de Souza, contextualiza o protagonismo de Betinho no conjunto de uma geração cujo propósito de vida era necessariamente público e coletivo. Ao retirar de Betinho um papel de herói solitário de uma trajetória única, Gomez de Souza marca Betinho como parte de um grupo de pessoas que, em 1963, para fundar um movimento político revolucionário – a Ação Popular – , passou um carnaval em Salvador redigindo um documento base discutido coletivamente e escrito pelo Betinho: “A Ação Popular é a expressão de uma geração que traduz em ação revolucionária as opções fundamentais que assumiu como resposta ao desafio da nossa realidade e como decorrência de uma análise realista do processo social brasileiro na hora histórica que nos é dado viver”.

Quando escrevi Betinho – sertanejo, mineiro, brasileiro (Planeta, 2007), sabia que qualquer biografia sobre ele ficaria aquém do personagem e de sua complexidade. Quando assisti Betinho – a esperança equilibrista, voltei a pensar no problema desta impossibilidade de dar conta do personagem a partir de algumas camadas de leitura que o filme proporciona ao espectador. Numa primeira camada, o que se vê na tela é o Betinho herói, guerreiro, um indivíduo extraordinário, o que determinados depoimentos terminam por reforçar. Numa segunda camada, falas de filhos, viúva e ex-mulher ajudam a compor, ainda que rapidamente, Betinho como uma pessoa qualquer, carregado das dificuldades emocionais que atravessam todo sujeito, histórico ou não. É numa fala dele que esta característica está mais presente: “Criou-se a ideia de que eu não erro. Mas eu também cometo erros”, admite, ele mesmo disposto a desmontar a armadilha de uma imagem do santo guerreiro.

Na terceira e, do meu ponto de vista, mais interessante camada do filme, há uma importante recuperação de imagens de arquivo que, reunidas em torno de Betinho, configuram uma maneira de contar a história recente do país. Do golpe militar de 1964, simbolizado pelo incêndio na sede da UNE, na Praia do Flamengo (“Ali eu percebi que o Brasil nunca mais seria o mesmo”), às imagens da campanha pela Anistia, embalada pelo hino encomendado para o irmão do Henfil, passando pelas imagens do armazém da cidadania lotado de cestas básicas a serem distribuídas no Natal sem Fome e pela marcha em defesa do impeachment do presidente Collor em Brasília, há uma narrativa de um país que não perdeu apenas a figura de Betinho, cuja morte já tem quase 10 anos, mas perdeu principalmente essa esperança equilibrista que buscava na democracia direta um mecanismo de aprimoramento do sistema democrático brasileiro e uma crítica ao poder representativo.

Há uma compreensão política de que o fim das grandes lideranças carismáticas acontece no mesmo momento que em se encerram também as possibilidades das grandes narrativas. Nesse aspecto, Betinho é ao mesmo tempo o último líder carismático e o primeiro a perceber e propor, revestida de campanha contra a fome, uma participação popular direta que eliminava intermediários e representantes. “Eu sou só o animador”, diz a certa altura do filme. Claro que Betinho foi muito mais do que um animador da Ação da Cidadania, mas só se destituindo do papel de líder podia indicar outra perspectiva democrática que não passasse pelas estruturas representativas formais. A recusa ao Ministério da Fome, à filiação partidária e a qualquer cargo público fazem dele um personagem único, considerando que nos últimos 20 anos muitos movimentos sociais foram sendo cooptados pelo aparato estatal, ganhando em financiamento e sobrevivência e perdendo em possibilidades de crítica. Morreram, e isso o filme mostra exemplarmente, as chances prometidas pela esperança equilibrista.

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