A comédia humana suburbana

Música

04.10.11

O texto abaixo integra o folder do show João Bosco canta Galos de briga, que será apresentado no IMS-RJ nesta terça-feira, dia 4/10.

 

Começo com uma resumida história do surgimento dessa que é uma das maiores parcerias da música brasileira. João Bosco e Aldir Blanc estrearam em 1972, no lado B de um compacto que tinha, no lado A, simplesmente “Águas de março”. Conta-se que Tom Jobim, após ouvir “Agnus Sei”, que lhe faria companhia no compacto, disse a Sérgio Ricardo, responsável pela escolha: “Ô, Sérgio, você tá querendo me derrubar?!”. No ano seguinte, a dupla lançaria seu primeiro long-play, que leva o nome de João Bosco. Escutado hoje, esse disco, brilhante, já permitia concluir que aquela parceria era para ser acompanhada de perto; mas o estilo que lhes garantiria um lugar de destaque na história da música brasileira só seria consolidado no LP seguinte, o clássico Caça à raposa. Aí já estão os sambas redondos, de melodias contagiantes e letras que fazem uma crônica, vazada em incomum engenho verbal, da realidade brasileira e, principalmente, carioca. O LP seguinte, de 1976, é este Galos de briga, que confirma e aprofunda a mestria e a inventividade de seu predecessor.

Como se sabe, após a repressão às utopias políticas dos anos 1960, em meio à tortura e ao exílio, a saída existencial para muitos, nos anos 1970, foi o “desbunde”, a contracultura, as experimentações sexuais, comportamentais e com estados alterados da consciência. Galos de briga está distante de tudo isso, da estética hippie e contracultural, mas também das canções de protesto esteticamente ingênuas (sua maior proximidade, a meu ver, é com a obra de Chico Buarque dos mesmos anos). Em suas canções, o que se ouve é clamor político revolucionário e ternura pelo jeitinho suburbano, que é o outro lado da moeda da jeunesse dorée da bossa nova. Isso em chave a um tempo “tradicional”, reverenciando o samba, o bolero e a marcha-rancho, mas também moderna, autoconsciente, ou “universitária”, nos termos da nossa história musical.

Tudo nesse disco manifesta uma estética realista, a um tempo crua e profunda, lírica e direta, terna e revoltada. A começar por seu projeto gráfico. Na capa, de Glauco Rodrigues, a cor rubra da revolução socialista, a garra beligerante de um galo, o santo guerreiro e o olho da consciência política. É uma declaração de guerra. Na contracapa, João e Aldir andam por uma rua. No encarte, aparecem em fotos 3 x 4, jogam sinuca sob um aviso de ordem da polícia e tendo como lua uma foto de Madame Satã. Na outra página, anunciam-se como galos de briga nos classificados de um jornal, e embaixo suas fotos 3 x 4 aparecem em negativo. A rua, o jornal, o 3 x 4, a polícia, a malandragem, a sinuca: são esses os elementos que remetem à galeria da pequena Comédia Humana Suburbana apresentada em Galos de briga, do malandro no divã à rumbeira-boneca de mola, do latin lover à miss Suéter, do boêmio com dor de cotovelo aos boias-frias dançando-dormindo de olhos abertos à sombra da alegoria dos faraós embalsamados.

Mas a todos esses elementos concretos, diretos, que perfazem a vívida galeria de personagens cariocas, deve-se acrescentar a perspectiva daquele 3 x 4 em negativo: a grandeza desse disco vem igualmente de sua profundidade, musical e verbal, de sua apresentação do sentido da realidade, do que nela é invisível e, entretanto, iluminador. A transversal do tempo, o rádio desligado irradiando o silêncio do amor terminado, o latin lover aposentado, definhando de tédio, as esfinges das encruzilhadas: a realidade, portanto, e seu raio-x.

A dupla Bosco/Blanc permaneceria solidamente unida até o disco 100ª apresentação, de 1983. Já nos discos seguintes de João Bosco, Gagabirô, de 1984, e Cabeça de nego, 1986, metade das canções não é da parceria. O canto de João Bosco, ligeiramente dramático em Galos de briga, interpretando as letras, daria lugar a um canto orientado por critérios tanto cancionais quanto estritamente musicais. Do mesmo modo, a ausência do parceiro levou-o a explorar letras assemantizadas, quase que apenas fonéticas, como a querer transformar a letra em som, a canção em música. Aldir, de sua parte, teria em Guinga seu parceiro mais constante, e também suas letras não teriam exatamente as mesmas características que aquelas com João. É como no amor, em que nos descobrimos outros com cada nova pessoa que nos relacionamos. Há, contudo, aqueles amores eternos, que ficam para os outros, mesmo quando passam para nós. Se é que passam.

* Francisco Bosco é coordenador da rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles . É ensaísta, autor de E livre seja este infortúnio (Azougue, 2010), Banalogias (Objetiva, 2007) e Dorival Caymmi (Publifolha, 2006). Assina coluna no jornal O Globo.

* Na imagem da home que ilustra este post: João Bosco e Aldir Blanc 

 

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