O tempo é curto, os filmes são muitos. Esse poderia ser o slogan da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (aqui, a programação completa).Vamos então a eles, sem mais delongas.
Lições de harmonia, do cazaque Emir Baigazin, Urso de Prata no festival de Berlim. Um rapaz de um lugarejo do Cazaquistão, em confronto com os bad boys do colégio onde estuda. O arcaico e o moderno, o urbano e o rural, a ciência e a religião, tudo em tensão permanente num filme em que concisão é sinônimo de precisão, sob o controle absoluto do ritmo, da luz e do enquadramento por um diretor que não tem nem trinta anos. Um vero prodígio. Para se ter uma ideia, aqui vai uma breve cena do filme, em que o protagonista, aluno brilhante de física, faz uma microcadeira elétrica para executar uma barata:
http://www.youtube.com/watch?v=vyAUtTGL6A4
Ana Arabia, do israelense Amos Gitai. Outra maravilha. Num único plano-sequência sem cortes (com perdão da redundância), acompanhamos uma jornalista (Yuval Scharf) a entrevistar moradores de um bairro na periferia de Jaffa para reconstituir a história de uma judia que, depois de sobreviver ao Holocausto, casou-se em Israel com um operário muçulmano, gerando uma prole híbrida árabe-israelense. A câmera que perscruta criaturas e ambientes desse pequeno pedaço despedaçado do mundo acaba revelando fraturas humanas e geopolíticas de longo alcance. Nada de discursos ideológicos ou abstratos: tudo é seco e concreto como as pedras pisadas pelos personagens. A proeza é criar um tom documental e espontâneo num filme que certamente foi construído meticulosamente nos menores detalhes.
http://www.youtube.com/watch?v=VjVoiBtb0aU
Teatro dionisíaco
A farra do circo, documentário de Roberto Berliner e Pedro Bronz sobre o Circo Voador, que marcou época no Rio de Janeiro dos anos 1980. Um espaço de produção cultural e diversão onde praticamente nasceram grupos de teatro como o Asdrúbal Trouxe o Trombone e bandas como Blitz e Barão Vermelho e por onde passou a nata da poesia e da música popular brasileira, de Caetano e Gil a Hermeto Paschoal, de Clementina de Jesus a Arrigo Barnabé. Um lugar que misturava circo, dança, teatro, música e poesia.
Mais do que um impressionante resgate de um momento/movimento artístico importante, com material registrado pelo próprio Berliner no calor da hora, é uma celebração de um feixe de utopias: a da arte como expressão de liberdade individual e comunhão social, a da conciliação do trabalho com a festa, do erudito com o popular, do moderno com o arcaico. Teatro dionisíaco, como nas origens. Vale contrastar com os tristes tempos que vivemos, nos quais, como diz a protagonista de Educação sentimental, de Julio Bressane, “a tirania da economia política empedrou o coração do homem”.
Educação dos sentidos
Chegamos então a Educação sentimental, de Julio Bressane. Aqui, é outro departamento, é o lugar em que o cinema se interroga a partir de seus próprios termos: luz, sombra, enquadramento, profundidade, ritmo. Como vem acontecendo há tempos na obra do diretor, o “entrecho” é reduzido ao mínimo para que cada plano tenha o máximo de ressonância e significação. Dois personagens – uma mulher madura (Josie Antello) e um rapaz inexperiente (Bernardo Marinho) – e o entrecruzamento de dois mitos recorrentes na cultura ocidental: o do amor de um mortal por uma deusa (Endimião e Selene) e o da educação sentimental de um jovem por uma mulher mais velha.
http://www.youtube.com/watch?v=kbcVilvLBR8
O local é o Rio de Janeiro atual, mas Bressane constrói, pelo discurso, pelos signos distribuídos no quadro e sobretudo pelo uso arguto dos ruídos e da música, um espaço outro, literalmente anacrônico, isto é, não apenas fora de seu tempo, mas em desacordo com ele. Cada quadro é uma constelação de signos e referências que induzem à interpretação e ao pensamento: de uma pintura (salvo engano) de Frida Kahlo a um fotograma de Tabu, de Murnau; de uma dança de Salomé à personagem de Norma Desmond em Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder.
A última parte do filme, com cenas de bastidores e detalhes da filmagem, procedimento recorrente em Bressane, é muito mais do que a mera incorporação de um making of ao corpo da obra: é ao mesmo tempo um guia de leitura e um multiplicador de significados do que se viu antes. Inútil tentar explicar. Só vendo.