A certa altura do documentário Chico – Artista Brasileiro, de Miguel Faria Jr., o compositor investe contra a nostalgia de um Brasil que já não existe (ou que talvez nunca tenha existido). É um movimento saudável, ainda mais num documentário desse gênero. Chico defende que o país é melhor hoje, a despeito de todos os problemas e de todas as contradições. Diz que já não seria possível criar a Bossa Nova no Brasil de hoje, porque a Bossa Nova era uma música de elite, de Ipanema, e hoje é o Brasil inteiro que se faz representar pela música. E por mais que essa música possa parecer pobre ou cafona em comparação com a Bossa Nova, ela representa, muito melhor do que a Bossa Nova, o que o Brasil de fato é, em sua diversidade. E aí, Chico aproveita para engatar em uma piada contra quem lamenta a tomada dos aeroportos pela população que antes estava confinada às rodoviárias. O compositor ri dos que guardam a nostalgia do tempo em que era preciso se arrumar para fazer viagens internacionais. Hoje, já não basta embarcar em um avião para Paris para escapar à cafonice do Brasil, porque viajar de avião também ficou brega. E a plateia ri com ele.
Há duas coisas aí. Uma é a incontestável democratização do país, a redução das desigualdades, a conquista dos direitos, a diversidade etc. De fato, o país é muito melhor e muito mais visível do que era. Já não é possível manter a ficção desgastada de uma terra bela, boa, rica e pacífica, onde as pessoas eram felizes e as injustiças, a violência e a pobreza acabavam varridas para debaixo do tapete. A outra coisa tem a ver com a ideia de exceção e aí talvez valesse separar a Bossa Nova, música de elite, de quem ainda sonha com o tempo em que os aeroportos não eram rodoviárias. Porque, ao juntar as duas coisas, corremos o risco de endossar um velho populismo que a própria obra de Chico contradiz.
Faz uns meses, numa cidadezinha do sul da França, quase fui trucidado por uma plateia de franceses sexagenários quando, em um debate sobre literatura brasileira contemporânea, depois de um lindo concerto de música brasileira (basicamente, Bossa Nova), com versões originais e em francês cantadas por duas francesas muito talentosas, ousei dizer que adoraria viver naquele país que elas cantavam, mas que aquele não era o Brasil que eu conhecia.
Uma das cantoras se levantou da plateia para tentar se defender do que lhe pareceu uma crítica a sua visão ingênua, nostálgica e exótica do Brasil. E quando fui tentar esclarecer que não era uma crítica, que eu tinha de fato adorado o show, queria apenas poder falar do país no qual eu vivo e escrevo, que já não tem quase nada a ver com aquele que elas cantavam, um senhor se levantou e me pediu para calar a boca, porque eu estava estragando a noite. As cantoras não idealizavam o Brasil, mas a plateia, sim. Uma plateia de franceses aposentados, que também devem ter nostalgia de uma França que já não existe e que hoje, confrontados com a crise e com o acirramento das tensões raciais, talvez não pensem duas vezes antes de votar na extrema direita.
A ideia de que hoje há de tudo, que se tem acesso a tudo e que tudo está representado é genial. É o discurso da internet. Tudo o que antes não tinha lugar ao sol agora está ou pode estar visível. Mas as coisas começam a se complicar quando percebemos que nesse mundo do sol absoluto, onde tudo pode enfim existir em pé de igualdade, com sua pobreza, sua feiura e sua cafonice, no fundo falta lugar para a exceção. Quando por acaso ela aparece, a exceção é imediatamente associada a elitismo, ao oposto do Estado democrático de Direito. E é interessante que Chico diga agora o óbvio que todo mundo sabe (e sempre soube) mas não diz nem precisava dizer: que a Bossa Nova era uma música de elite, que dificilmente poderia ser criada hoje. De elite, claro, mas também, e sobretudo quando surgiu, de exceção.
Por que a exceção não cabe nesse mundo onde tanto se alardeia que tudo cabe e que tudo pode afinal existir e ser visto? Por que ela é imediatamente desautorizada, seja pela contradição de sua tendência natural à invisibilidade num mundo de visibilidade absoluta, seja por essa associação irrefletida a elitismo e a antidemocracia? Qual o problema de uma arte de exceção, se sua condição de possibilidade é justamente a democracia, regime da inclusão das diferenças e não apenas regime da maioria? Por que essa tendência a confundir maioria e consenso com democracia, ainda mais quando se trata de arte? Porque a exceção, que é fundamental nas artes e que por isso mesmo precisa ser defendida a despeito de gostos e tendências, é também o que está ligado ao risco, ao disfuncional, ao erro e ao fracasso. Nada disso combina com discursos politicamente edificantes.
Umas das principais perversões do mundo contemporâneo tem a ver com a confusão entre essas duas visibilidades: 1) a visibilidade (e o direito à existência) do que antes não podia ser visto e 2) a visibilidade autorreplicante do que quanto mais se vê mais é visto. São duas coisas completamente diferentes e, em certo aspecto, conflitantes. No primeiro caso, está a população que antes era segregada às rodoviárias e hoje tem direito de acesso aos aeroportos e ao transporte aéreo, como qualquer cidadão. No segundo, está o princípio de mercado elevado à enésima potência pelos algoritmos que estruturam a lógica da internet: quanto mais uma coisa é vista, mais ela será visível. Ou seja, você tende a ver somente o que todo mundo vê, embora a rigor tenha acesso a tudo. Pela lógica tautológica da internet, o que ninguém acessa torna-se cada vez mais inacessível, embora esteja, em princípio, disponível. É fácil entender como as exceções são banidas desse mundo da visibilidade total para um limbo de invisibilidade que equivale ao desaparecimento e à inexistência. E nesse sentido, associar a exceção na arte a elitismo e a antidemocracia não ajuda nem democratiza coisa nenhuma.